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sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A diferença entre costume, tradição, fundamento e técnica na Capoeira

Uma das maiores preocupações na Capoeira, especialmente entre os capoeiristas preocupados em ter uma postura profissional dentro da arte, é em manter, respeitar e aprofundar tradição, costume, fundamento e técnica. Apenas para efeito conceitual, neste texto vou procurar estabelecer diferenças (se existirem) entre tais idéias.
Em primeiro lugar, é conveniente ressaltar que uma palavra pode ter diferentes significados, dependendo da intenção de quem a usa. Por isso é mais importante prestar atenção na idéia por trás da palavra e não apenas na palavra em si. O que farei é tentar justamente estabelecer diferentes idéias, e não uma regra geral. Logo, alguém pode falar de tradição usando a idéia que aqui neste texto se refere a fundamento, e etc.. O que deve ser levado em conta é o conteúdo, e não a forma.


Costume



É um ato ou um rito praticado diversas vezes por um grupo de pessoas ao longo do tempo. Por exemplo, é costume um capoeirista cumprimentar o outro aos pés do berimbau, antes de iniciar um jogo.



Tradição






i12 Capoeira_antiga-1a tradição na capoeira é transmitida pela oralidade de geração em geração






Podemos definir como um conjunto de ritos e costumes praticados e transmitidos de geração em geração, sendo portanto uma ponte do passado com o presente e o futuro. Com o tempo passa a ser respeitada e pode mesmo adquirir ares de "sagrado". Tradição também pode se referir a toda uma linhagem dentro da capoeira. Por exemplo, fala-se em tradição "cachoeirana" quando se refere ao grupo de capoeiristas vindos da cidade de Cachoeira na Bahia, que se destacaram na metade do século passado.



Fundamento



A própria palavra contém o seu significado: fundamento é a base da capoeira. O essencial, o primordial, sem o qual a capoeira não existirá, ou será desfigurada.
Na capoeira existem duas linhas principais, a Angola e a Regional, com uma infinidade de subdivisões.
O importante é notar que cada uma dessas divisões tem suas próprias características, mas o que une a todos e possibilita que todos sejam automaticamente identificados como "capoeira" são detalhes, como a ginga, a malandragem, a musicalidade, a luta, a dança, a história comum que remete aos escravos africanos, etc... Todas essas características podem ser chamadas de "fundamentos" da capoeira, pois é a base sobre a qual toda a atividade da capoeira se desenvolve. Cada estilo, posterior a isso, desenvolve também seus próprios fundamentos secundários que permitem também identificá-los e diferenciá-los perante aos outros. Por isso, um bom capoeirista deve conhecer bem os fundamentos gerais da capoeira e, pelo menos, os do estilo que pratica.



Técnica




desde seu início a capoeira passa por um constante aperfeiçoamento técnico. Na foto, Mestre Camisa, da Abadá-Capoeira, responsável pelas maiores evoluções na técnica da capoeira dos últimos anos



Podemos estabelecer técnica como o conhecimento prático de se fazer algo. Na capoeira, a técnica varia de acordo com o costume, a tradição e os fundamentos do estilo praticado. Por exemplo, cada estilo tem sua própria técnica de confecção do berimbau, de armar e tocar o mesmo, sua própria técnica de jogo, de ensinar a capoeira, etc...
A técnica pode e deve ser melhorada, tomando sempre o cuidado de respeitar fundamento e tradição. Desde o início e especialmete nas últimas décadas (sob forte influência da Regional de Bimba) observa-se uma preocupação contínua com o aperfeiçoamento das técnicas, especialmente da luta e da parte acrobática da capoeira, de modo que um capoeirista de hoje precisa treinar muito mais do que no passado para que possa atingir um nível de excelência dentro da arte. Poderia se dizer que tal aprimoramento se dá apenas no nível esportivo da atividade, mas a parte cultural também se aprimora. Os toques de berimbau, as músicas, o estudo da capoeira se aperfeiçoam a cada dia sem perder de vista os seus fundamentos. O interessante é notar que a capoeira não perde sua energia, tão explosiva e cativante, com isso. Nossa arte está amadurecendo sem perder seus sentimentos e nem a sua essência popular. Graças ao trabalho de tantos mestres, professores e alunos, a capoeira continuará sendo uma arte do povo e seguirá com o mesmo Axé dos tempos de outrora.



(Soldado Capoeira)

terça-feira, 7 de setembro de 2010

A arte da vadiação

rebeldia em forma de festa

“vamo vadiar, vamo vadiar…”

Ouve-se muito falar do termo "vadiação" na capoeira . As canções, cantigas, quadras e corridos sempre estão chamando o jogador para vadiar.
Na capoeira, vadiar significa brincar, jogar descontraidamente, usar o espaço da roda para uma espécie de confraternização entre os praticantes. Essa é uma característica comum a diversas manifestações afroculturais presentes no Brasil, como o samba, o jongo, o maracatu, o lundu, coco de roda, etc...
A origem dessa característica vem, como já cantava Clara Nunes, "desde o tempo da senzala". Naquela época de tanto sofrimento para os negros o trabalho era uma lei cuja violação era punida com violência e crueldade. Trabalhava-se exaustivamente e o trabalho chegava a ser confundido com a própria vida.
Os escravos que fossem pegos sem trabalhar eram chamados e tratados como vadios. Logo, as atividades que não fizessem parte da rotina de trabalho eram entendidas como "vadiação", uma afronta a lei do trabalho, mesmo quando permitidas pelos senhores de engenho. A permição era, obviamente, uma estratégia para que através dessas atividades os escravos, sentindo-se livre por alguns instantes, descarregassem sua ânsia de liberdade e esquecessem de se rebelar ou fugir.
Mas, era justamente nesses momentos que os negros se faziam resistentes ao domínio que lhes tentavam impor. Mantinham sua cultura viva e forte, sua crença, suas lutas de defesa e ataque (que disfarçadas em dança se tranformariam na capoeira), congregavam a união do grupo, etc...
A vadiação era uma das formas de rebeldia e resistência dos negros, que dessa forma conseguiam burlar a vigilância constante de feitores e jagunços, e em forma de festa, "debaixo do nariz" de seus carrascos, conspiravam a sua revolta.

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Jogar Capoera ou Dance de la Guerre, Rugendas, 1835

Fugas, motins, capoeira... logo, as autoridades iriam perceber o perigo representado pela vadiação e passariam a vigiá-la ainda mais, desestimulá-la e persegui-la. Mas, o negro já não podia mais deixar de vadiar e mesmo sob a cruel perseguição arranjava formas de praticar suas atividades.
A vadiação, era uma necessidade, uma válvula de escape para a tensão do dia-a-dia das fazendas e engenhos, uma forma do escravo se declarar e se sentir livre.
Um texto de Eunice Catunda, contido no livro "O Barracão do mestre Waldemar", do pesquisador Frede Abreu, nos fala justamente dessa urgência que o povo tem de praticar a sua cultura. Para ela a arte, a cultura popular é mais verdadeira, pois não é só uma forma de diversão, e sim uma necessidade imprescindível.

Com o passar do tempo a vadiação tomaria forma e corpo se transformando em samba, em capoeira, em danças religiosas, como o afoxé e o jongo, enfim em arte popular, viva e forte, e como, cantou Clara Nunes, "quanto mais chicote estala, e o povo se encurrala, o som mais forte se propala". O Candomblé, a Umbanda e afins também fazem parte dessa cultura, mas, não podemos, por respeito, citá-las como vadiação, afinal são práticas religiosas e conduzidas como dever, como obrigação, como trabalho pelos negros. São práticas também símbolos de resistência e de admirável diversidade e riqueza, fontes infindáveis de cultura.

carybe-vadiacao47_g Vadiação, gravura de Carybé

Curiosa é também a relação que a própria classe dominante tinha com as manifestações afro, por vezes perseguindo e proibindo, e em outras vezes se utilizando das mesmas práticas em prol de algum interesse. Como por exemplo, a capoeira era proibida, mas diversas autoridades contratavam os capoeiristas para fazer o papel de guarda-costas ou de jagunços políticos.

Enfim, vadiar para os senhores de engenho era uma simples forma de diversão e distração dos escravos que se tornou perigosa com o passar do tempo. Vadiar para os escravos era uma forma de festejar, resistir e rebelar, era uma verdadeira arma de guerra.

Vadiação é rebeldia, uma rebeldia em forma de festa, uma rebeldia em forma de arte.

(Soldado Capoeira)

Bibliografia:
- música:
Brasil Mestiço, Santuário da Fé, de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro
no álbum Brasil Mestiço, de Clara Nunes,1980

- livro:
"O Barracão do mestre Waldemar", de Frede Abreu, Organização Zarabatana, Salvador, 2003.