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quinta-feira, 13 de maio de 2010

Filosofando sobre Bimba e Pastinha

(breve pensamento sobre a vida dos Mestres)

O princípio que não tem método vs O Mestre que dá lição

Uma das citações mais utilizadas pelos capoeiristas é a celebre frase que Mestre Pastinha utilizou para expressar seu pensamento sobre a Capoeira, "mandinga de escravo em ânsia de liberdade, seu princípio não tem método e seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista". Mas, afinal, o que será que Pastinha quis dizer?
A afirmação mostra que para Pastinha, o ensino da Capoeira não devia seguir um método rígido e padronizado, mas respeitar a invidualidade de cada capoeirista. Para ele, cada um tem sua mandinga, seu jeito de jogar, e é essa naturalidade o caráter primordial, já que remete ao próprio ideal de liberdade da capoeira. Mestre Pastinha corroborou essa idéia por diversas vezes, como em "cada um é cada um, ninguém joga do meu jeito". Ele valorizava também a tradição, a ancestralidade da Capoeira, uma espécie de devoção pelos fundamentos da chamada "Capoeira Mãe", como entitulou a Angola, e foi com essa filosofia que conquistava o respeito e admiração de intelectuais e figuras do meio acadêmico.

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Mestre Pastinha e Mestre Bimba

Como contraponto, nessa época, a Capoeira Regional de Mestre Bimba era uma novidade que fazia grande sucesso entre os capoeiristas, como o faz até hoje. Mestre Bimba criou um método, para ensinar os fundamentos de sua Capoeira, criando sequências, toques e toda uma formalística, como batizados e graduações. Essa espécie de formalização, fazia parte de uma vontade do Mestre de valorizar a Capoeira como luta, como arte marcial eficiente, conquistando também, dessa forma, os meios acadêmicos.

Porém, se engana quem pensa que os dois Mestres eram tão rígidos assim. Podemos encontrar diversos paradoxos. Por exemplo, apesar de Pastinha defender os rituais e pregar que a Capoeira era mandinga, deu à sua academia o nome de CECA - Centro Esportivo de Capoeira Angola. E, Mestre Bimba, que deu à sua academia o nome de Centro de Cultura Física e Luta Regional Baiana, usou como símbolo a Estrela de Salomão, salientando o lado filosófico da capoeira, em suas quadras e corridos, Bimba também cantava a mandinga do jogo, criou as festas de batizado e uma série de rituais, como a hora de escolher o apelido do aluno, que criava um clima quase espiritual.

Iê , viva meu Deus...eê, viva Deus do Céu, camará

Bimba e Pastinha são a própria imagem das duas vertentes principais da Capoeira. Talvez se só tivesse existido Mestre Bimba, a Capoeira Angola não tivesse chegado tão viva aos dias de hoje. E, por outro lado, se só tivesse existido Mestre Pastinha, a Capoeira como um todo poderia não ter tomado o mundo, pois o veículo principal para que isso acontecesse, foi, sem dúvida, a Capoeira Regional.

A vida dos dois Mestres também é cheia de coincidências. Por exemplo, os dois aprenderam Capoeira com africanos, Bimba com Bentinho e Pastinha com Benedito. Bentinho era capitão da Cia de Navegação Baiana, Pastinha serviu a Marinha. Ambos deram suas vidas pela Capoeira, e no fim se viram desamparados.
Bimba, faleceu longe de sua terra, em Goiânia, se sentindo enganado pelas autoridades. Pastinha, em Salvador, também foi enganado pelas autoridades, que prometeram uma reforma, mas nunca mais lhe devolveram o espaço de sua academia, e faleceu, cego e abandonado num abrigo. O verso que Bimba tanto cantou, nunca foi tão cruel de ouvir, "passar bem, passar mal, mas tudo no mundo é passar, camará..."

E, felizmente, essa fase turbulenta também passou. A Capoeira cresceu e deu "a volta ao mundo". A história de ambos os Mestres é cantada hoje por todas as partes, imortalizando-os em cantigas, ladainhas e canções, para serem lembrados para sempre no local em que mais gostavam de estar, as rodas de Capoeira.

Pode até soar como clichê, mas não deixa de ser a mais pura verdade: a Regional e a Angola são duas faces que coexistem para formar uma só Capoeira. Bimba e Pastinha, embora pareçam tão diferentes no estilo, métodos e idéias, são igualmente reis, guardiões, enfim, Mestres dessa arte-luta-filosofia e tudo mais Capoeira.


(Soldado Capoeira)

sábado, 8 de maio de 2010

O negro e o Brasil do século 19- sobre as gravuras de Rugendas

Rugendas foi um dos grandes pesquisadores que nos deixou uma vasta imagem do que foi o Brasil do Século 19. Em suas gravuras podemos visualizar manifestações do cotidiano de um Brasil "pitoresco".
E sobretudo, podemos ter uma idéia bem clara da origem de diversas manifestações culturais afrodescendentes presentes hoje no Brasil. Suas gravuras refletem reuniões, confraternizações de escravos, vigiadas ou não por feitores e jagunços, a mando dos senhores de engenho.
Essas reuniões eram chamadas genericamente de "batuque", nesse ambiente os negros se sentiam seguros, mesmo que sob a vigilância constante, para praticar suas festas e rituais, e disfarçadas em dança, suas lutas trazidas da África. Tais comemorações eram permitidas pelos senhores para que o negro se distraísse e, aliviado do estresse do trabalho exaustivo, não pensasse em se rebelar. O ambiente servia também para misturar as culturas, uma vez que como forma de dominação, os escravos eram comprados cada qual de regiões diferentes, para evitar ao máximo possíveis rebeliões - essa receita porém, não mostrou funcionar tão bem, já que, traçando formas mais eficientes para se defender e lutar, oriundas justamente dessa mistura, os negros fugiam, se rebelavam, resgatavam seus irmãos para os Quilombos, e, também culturalmente, se mantinham resistentes a dominação que tentavam lhe impor.
Nas gravuras de Rugendas, encontramos os princípios da Capoeira. Esboços das primeiras rodas, movimentos e golpes, que se assemelham ainda com a luta dos dias dias de hoje. Podemos verificar também a presença da musicalidade, atributo de quase todas as manifestações africanas, que acompanha a capoeira desde os seus primóridios. A presença da mulher e o caráter lúdico das reuniões, é também uma forte característica observada. Daí, também se originou a extinta luta conhecida como batuque e é o princípio do samba.
Esse tipo de reunião, não acontecia somente no Brasil. Em todos os países onde houve a diáspora africana, encontramos registros semelhantes, e em todos eles, foi deixada como herança manifestações semelhantes ao samba e a capoeira.
Se observarmos a forma de organização desses encontros, podemos notar que sempre acontece a formação de uma roda, no entorno da qual estão os instrumentistas e o meio fica livre para dançarem ou lutarem. É a mesma organização que se encontrava na luta do batuque, extinta na primeira metade do século 20, e se vê ainda hoje na Capoeira e nas rodas de samba.
As gravuras nos mostram a matriz de uma futura sociedade brasileira fortemente marcada pelo trabalho e pela festa. Ao observarmos as gravuras, notamos o espírito festivo do negro, a sua forte performance corporal e musical, elementos que também formam a "personalidade" da cultura brasileira.

Jogar Capoeira ou Dança da Guerra - 1835 (Reprodução - Johann Moritz Rugendas. Viagem pitoresca através do Brasil. 

Jogar Capoeira ou Dança da Guerra - 1835 (Reprodução - Johann Moritz Rugendas. Viagem pitoresca através do Brasil.)


(Soldado Capoeira)

sexta-feira, 7 de maio de 2010

A FACE MALANDRA DA CAPOEIRA

Um dos valores mais fortes presente na personalidade dos capoeiristas é a malandragem. Ela é a virtude que ajuda o capoeira a se sair bem das "saias justas", seja na Roda, seja na vida. A malandragem na Capoeira é alçada quase que como um "dom divino", ao lado da famosa mandinga, a proteção espiritual dada a poucos capoeiristas.
A malandragem está presente na Capoeira desde os seus primórdios. Com o fim da escravidão, uma multidão de escravos recém libertos se dirigiu para as áreas urbanas, criando comunidades. A falta de apoio do governo, que simplesmente libertou os escravos das fazendas, mas não lhes ofereceu uma nova forma de ganhar a vida, fez com que essas comunidades já nascessem na miséria.
Nesse ambiente, surge a figura do malandro, sempre em seu terno impecável de linho branco, seu chapéu de lado, bom no batuque e na capoeiragem, arrumando as mais variadas confusões, sempre escapando da polícia e arranjando formas alternativas de ganhar a vida. O malandro, com seu jeito descolado de ser, representa a figura do negro que conseguiu se sobrepor a um destino de pobreza a que parecia estar fadado. É o estereótipo do homem que consegue, com uma ginga de corpo na vida, escapar e se dar bem em várias situações em que tudo parece estar perdido. Homem namorador, que deixa corações apaixonados por onde passa.
Essa malandragem é o que fez a Capoeira sobreviver as repressões policiais e chegar tão forte aos dias de hoje. Foi a esperteza dos malandros, sempre escapando da polícia, que garantiu a sobrevivência da atividade nos primórdios da República. Mestre Bimba e Mestre Pastinha foram sublimes malandros ao conquistar as classes mais altas e acadêmicas, descriminalizando a Capoeira e a afirmando junto a toda a sociedade, que a discriminava e reprimia. E, se voltarmos ainda a época da escravidão, veremos que uma primeira nuance dessa malandragem foi que permitiu ao negro praticar sua luta, habilmente disfarçando-a em dança. Com esse mesmo espírito, o negro conseguia, numa distração dos feitores, fugir para a mata, escapar dos capitães do mato e encontrar os secretos Quilombos.
A malandragem é uma das principais características da Capoeira.
Num contexto ainda maior, a malandragem é a arma com a qual os negros, e as classes menos favorecidas em geral, sobrevivem ao mundo cruel das classes dominantes. Com seu jogo de cintura, o malandro sai por cima daqueles que, equivocadamente, acreditam dominá-lo.


(Soldado Capoeira)

Vejam, para efeito de estudo, alguns textos interessantes sobre alguns malandros… Esse de João Mina é uma raridade,  um texto muito importante para quem quer aprender os fundamentos da capoeiragem. O de Madame Satã também, conta em poucas palavras a história dele e nos mostra um pouco do ambiente de um Rio de Janeiro cheio de malandragem… Aproveitem!

JOÃO MINA

João Mina quer ver Muleque Bimba na boa capoeiragem
João Mina

Publicado originalmente no jornal Estado da Bahia, em 15 de março de 1948

A notícia divulgada pelo Diários Associados de que o mais famoso capoeirista baiano, Muleque Bimba, que dirige uma escola dessa briga, tornada nacional, pretende vir ao Rio fazer exibições públicas dos nove cortes que inventou, causou sensação entre os profissionais da defesa pessoal. Existe mesmo um movimento para que se efetive a vinda de Muleque Bimba, o sexagenário que ensina a muitos moços de sua terra os golpes sinistros da capoeiragem, sabendo-se até que já foi seu aluno o hoje deputado Juracy Magalhães.
Entre nós, João Mina é o mais velho dos três últimos remanescentes da já remota época das batucadas e capoeiragens que até o primeiro quartel deste século perturbaram a ordem e a tranquilidade públicas. Tem mais de sessenta anos o preto velho e arrasta seus atuais pesados dias ali pelo Estácio.
- Está aqui neste seu criado - diz João Mina para o repórter numa tendinha do morro - um negro que fazia batuque e capoeira no morro da Favela, que é o lugar que nasceu o samba no Rio. Batuque quem fazia era negro de macumba, negro bom de santo, bom de garganta e, principalmente, bom de perna para tirar outro da roda. Tinha batuque todo dia na favela, com a negrada metendo a perna e jogando parceiro no chão, até a polícia chegar. Aí, então, como num passe de mágica, a batucada virava samba, entrando as mulheres dos batuqueiros na roda. Homem não dançava samba. Samba é nome de filha de santo, mas todo mundo de fora que subia o morro procurando mulher, dizia que ia ver samba e por samba ficou a dança que elas dançavam e que era batuque mais mole e bem remexido - era coco.
Assim que a polícia saía, o batuque continuava e os batuqueiros entravam duro na capoeiragem. Pobre do moleque que cochichasse quando o batuqueiro cantasse:

Olha banda
Olha a banda
Negro da ronda

Podia contar que ia levar uma boa jogada, quer dizer, rápida e violenta pernada que o atirava fora da roda, principalmente se tivesse mulher boa perto dele. Mas se o muleque saísse dessa, o batuqueiro sem perder o ritmo do batuque emendava:

Batuqueiro novo
Dava um baú
Pra não perdê o amô...

A banda jogada passava pra banda de frente e o batuque soltava logo um baú no parceiro, atirando o muleque no chão, pelas costas.
Outro corte ruim de defender, pra batuqueiro novo, era a tiririca, quando o mestre cantava:

Tiririca é faca de cortar
Quem não pode não intimida
Deixa quem pode intimá...

Um pé ficava no chão e o outro subia virando com força no pé do ouvido do parceiro. Mas a capoeiragem tinha muitos cortes ruins. Tinha o dourado, a encruzilhada, tinha o rabo de arraia...
- Sim, João Mina, o fulminate rabo de arraia...
- Pois é, meu filho, o rabo de arraia...
Os outros que ouviam, reverentes, a palestra do velho João Mina, fizeram um sinal negativo para o repórter. O homem da tendinha serviu umas doses de cachaça e João Mina continuou:
- Batuqueiro bom brincava na frente do fandango e caninha verde, no carnaval, abrindo ala como se faz hoje diretor de corda de escola de samba. Batuqueiro bom brincava de noite na Praça Onze de Junho, que já foi reduto enfezado de gente do morro.
Um dia, os batuqueiros da Favela tiveram uma arrelia. Houve então, uma separação. Os grandes ficaram na Favela e os outros foram para o morro de Santo Antonio. Casaca de Bronze, capoeira de respeito e capanga de político, uma noite, ninguém sabe porque, nem por ordem de quem, botou fogo em tudo quanto era barracão do morro de Santo Antonio e fugiu, fugiu que até hoje não se sabe notícias dele.
A negrada que ficou sem barraco no morro de Santo Antonio foi toda para o Morro da Mangueira, os homens fazendo batuque e as mulheres sambando. O lugar onde eles levantaram os barracos ficou sendo chamado o Santantoinho de Mangueira. Depois é que vieram para a Estação, Querosene, Salgueiro. Apareceu o samba mesmo, quando Epitácio Pessoa mandou mudar o mulherio da Glória e da Lapa para a Cidade Nova.
Mas por aí, Sampaio Ferraz e Alfredo Pinto tinham dado cabo de muito batuqueiro, de muito moleque de capoeiragem. Isso de escola de samba é coisa nova, coisa boa, de preto, político trabalhador, que não quer mais saber de malandragem, nem de pernada.
João Mina rematou:
- Pois é menino, eu tinha vontade de ver esse tal moleque Bimba, para me lembrar dos velhos cortes do meu tempo...Será que ele briga mesmo?
Descemos o morro e Tancredo Silva, que apesar de moço, é o terceiro dos remanescentes, dissemos:
- Bernardo Sapateiro faltou ao encontro. Ele, que é daquele tempo, ia contar porque João Mina não quis falar do rabo-de-arraia.
- Você não sabe?
- Dizem que numa batucada na Praça Onze, num carnaval, João Mina deu um rabo de arraia num sujeito e ele morreu ali mesmo. João Mina foi para a Detenção e ficou na sombra uns anos. Quando voltou, trouxe a cuíca e nunca mais quis saber de batucada. Era só cuíca. E a batucada virou samba. Depois, Edgard trouxe o tamborim.
Na rua do Estácio, Tancredo Silva ainda disse:
- Olha, menino João não falou que, quando o batuque enfezava, os batuqueiros cantavam:

É ordem do Rei p'ra matar.
É ordem do Rei p'ra matar.

E o rabo de arraia comia solto até morrer o parceiro que estava condenado pela negrada. Essa ordem do Rei entre os batuqueiros vem do tempo em que o Brasil era Reinado e que a capangada tinha ordem para acabar com os pretos que conspiravam.

(Retirado do livro Encontros: Capoeira, de Frederico José de Abreu e Maurício Barros de Castro, editora Azougue Editorial.)

                                              MADAME SATÃ

Madame Satã, o capoeirista João Francisco dos Santos, nasceu no "Morro do Estácio", pelos anos de 1900, no Rio de Janeiro. De família humilde, se criou no porto carioca, onde aprendeu batuque com estivadores negros, descendentes de escravos angolanos, destacando-se seu mestre Gavião, companheiro de Edgar e "Meia Noite".
O maltas cariocas e Guaiamús foram gradativamente extintos com suas gangues, pelo anos de 1908 a 1910, pela polícia. Os que não foram mortos pelos polícias, morreram nos presídios. A figura do capoeirista vadio, malandro, que foi imortalizado pelos sambas da época: "Meu chapéu de lado, tamanco arrastado, como trote de cavalo, lenço de seda no pescoço, navalha alemã no bolso, com caminhar gingado, tomou conta do carioca provocador e eu tenho orgulho de ser vadio". O novo vadio andava sozinho, não mais em gangues, mas temido por sua valentia e violência sutil, zanzando pelos bares da boêmia portuária e morando nos cortiços. Com esta nova postura, o vadio não demonstrava ser uma ameaça, como nos tempos dos maltas. Do Império a República, os capoeiristas foram quase extintos, enquanto que o Estado Novo foi mais tolerante.
Nesta época que surgiu João Francisco, um negro de 1,90 m pesando quase 100 kg de músculos, cabelos longos alisados, elegante, costumava usar pantalona branca, camisa de seda italiana com cores exuberantes, com um grande tamanco de cara de gato. Desde os treze anos vivia nas noites da boêmia da Lapa, sobrevivendo de pequenos furtos, a favores libidinosos com marujos europeus, o que lhe garantia a sobrevivência.
Durante muito tempo foi leão de chácara de cabarés, botequins e cassinos. Quase diariamente se envolvia em brigas, onde mostrava sua destreza, foi quando foi convidado para integrar o grupo de bailado na figura do transformista "Mulata Balacochê", no cabaré "Cu da Mãe" onde logo se destacou, sendo muito aplaudido. Com contrato na bolsa, carteira assinada e salário certo todo fim de mês, além de gordas gorjetas colocadas no seu sutiã, terminavam as batidas policiais por vadiagem, com as brigas com os valentes.
Até que certo dia deparou-se com o marginal "Alberto 28", que lhe aplicou uma coronhada na cara, seguido de palavrões: " veado, puto, marica", etc.
João Francisco se conteve para não perder a oportunidade de ascensão, e se dirigiu para seu quarto de pensão. Ao chegar em seu quarto deparou-se com seu espelho, o rosto ensanguentado, e, as lágrimas se esvaindo em cascata. Foi em busca de "Alberto 28" e com um 38 acabou com um tiro na testa de seu desafeto.
Como recompensa, foi preso e encaminhado para o Instituto penal Cândido Mendes, na Praia de Dois Irmãos, na Ilha Grande, ligada ao município de Angra dos Reis, no sul do litoral do Rio de Janeiro. Esta penitenciária foi construída em 1940, onde eram mandados os capoeiristas desordeiros da época e os presos políticos e criminosos perigosos. Nesta cidadela João Francisco, por dezenove anos, foi preso. Implantou a capoeira na penitenciária, tornando-se uma grande liderança, sendo respeitado por todos.
João Francisco dividiu sua vida em Pigalle, a Casa Nova, o incrível "Cu da Mãe" e o cassino High Life. Recebeu da noite o apelido de "Madame Satã" por sua valentia e o domínio dos golpes de capoeira em sua pernas. Em uma oportunidade matou um malandro, o sambista Geraldo Pereira de mais de 1,90 m, com um soco na nuca.
O rei da vadiagem, Madame Satã, viveu de 1900 a 1976. Morreu, em total miséria, num quarto de cortiço, por enfarte do miocárdio. Mestre Paulo Gomes e Artur Emídio, nos últimos tempos de sua vida, foram um dos poucos amigos que o ajudaram em sua sobrevivência.
João Francisco derrubou com sua canhota, suas navalhas e suas precisas bandas e rasteiras muitos vadios de sua época. O estereótipo do homossexual frágil, efeminado, foi derrubado, pois era mais macho do que muitos homens de sua época. Capoeira não tem preconceito, preconceito é fruto da ignorância.

Bibliografia:

Crônica do jornalista Ronaldo Ribeiro;
Entrevista com o ex-presidiário Júlio de Almeida, que após 68 anos de prisão mora com sua família na Ilha.
Em 1986, tive a oportunidade de visitar a Ilha e conhecer vários moradores.
Entrevista com Edir Virgílio de Lima, o "Dica", funcionário do presídio que hoje vive da pesca e colhendo bananas e abacaxis.
Crônica do Mestre Nestor Capoeira na revista capoeira número 7
Entrevista com o Mestre Paulo Gomes

Contato: Dr. Luiz Carlos K. Rocha:
Tel.: (49) 323 1503

(retirado da revista Praticando Capoeira Ano II, Nº 21 , por Dr. Luiz Carlos Krummenauer Rocha, antropólogo, historiador, filósofo, teólogo, museólogo, phd em sociologia, presidente da Federação Catarinense de Capoeira e da Liga Oeste de Santa Catarina)