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sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A diferença entre costume, tradição, fundamento e técnica na Capoeira

Uma das maiores preocupações na Capoeira, especialmente entre os capoeiristas preocupados em ter uma postura profissional dentro da arte, é em manter, respeitar e aprofundar tradição, costume, fundamento e técnica. Apenas para efeito conceitual, neste texto vou procurar estabelecer diferenças (se existirem) entre tais idéias.
Em primeiro lugar, é conveniente ressaltar que uma palavra pode ter diferentes significados, dependendo da intenção de quem a usa. Por isso é mais importante prestar atenção na idéia por trás da palavra e não apenas na palavra em si. O que farei é tentar justamente estabelecer diferentes idéias, e não uma regra geral. Logo, alguém pode falar de tradição usando a idéia que aqui neste texto se refere a fundamento, e etc.. O que deve ser levado em conta é o conteúdo, e não a forma.


Costume



É um ato ou um rito praticado diversas vezes por um grupo de pessoas ao longo do tempo. Por exemplo, é costume um capoeirista cumprimentar o outro aos pés do berimbau, antes de iniciar um jogo.



Tradição






i12 Capoeira_antiga-1a tradição na capoeira é transmitida pela oralidade de geração em geração






Podemos definir como um conjunto de ritos e costumes praticados e transmitidos de geração em geração, sendo portanto uma ponte do passado com o presente e o futuro. Com o tempo passa a ser respeitada e pode mesmo adquirir ares de "sagrado". Tradição também pode se referir a toda uma linhagem dentro da capoeira. Por exemplo, fala-se em tradição "cachoeirana" quando se refere ao grupo de capoeiristas vindos da cidade de Cachoeira na Bahia, que se destacaram na metade do século passado.



Fundamento



A própria palavra contém o seu significado: fundamento é a base da capoeira. O essencial, o primordial, sem o qual a capoeira não existirá, ou será desfigurada.
Na capoeira existem duas linhas principais, a Angola e a Regional, com uma infinidade de subdivisões.
O importante é notar que cada uma dessas divisões tem suas próprias características, mas o que une a todos e possibilita que todos sejam automaticamente identificados como "capoeira" são detalhes, como a ginga, a malandragem, a musicalidade, a luta, a dança, a história comum que remete aos escravos africanos, etc... Todas essas características podem ser chamadas de "fundamentos" da capoeira, pois é a base sobre a qual toda a atividade da capoeira se desenvolve. Cada estilo, posterior a isso, desenvolve também seus próprios fundamentos secundários que permitem também identificá-los e diferenciá-los perante aos outros. Por isso, um bom capoeirista deve conhecer bem os fundamentos gerais da capoeira e, pelo menos, os do estilo que pratica.



Técnica




desde seu início a capoeira passa por um constante aperfeiçoamento técnico. Na foto, Mestre Camisa, da Abadá-Capoeira, responsável pelas maiores evoluções na técnica da capoeira dos últimos anos



Podemos estabelecer técnica como o conhecimento prático de se fazer algo. Na capoeira, a técnica varia de acordo com o costume, a tradição e os fundamentos do estilo praticado. Por exemplo, cada estilo tem sua própria técnica de confecção do berimbau, de armar e tocar o mesmo, sua própria técnica de jogo, de ensinar a capoeira, etc...
A técnica pode e deve ser melhorada, tomando sempre o cuidado de respeitar fundamento e tradição. Desde o início e especialmete nas últimas décadas (sob forte influência da Regional de Bimba) observa-se uma preocupação contínua com o aperfeiçoamento das técnicas, especialmente da luta e da parte acrobática da capoeira, de modo que um capoeirista de hoje precisa treinar muito mais do que no passado para que possa atingir um nível de excelência dentro da arte. Poderia se dizer que tal aprimoramento se dá apenas no nível esportivo da atividade, mas a parte cultural também se aprimora. Os toques de berimbau, as músicas, o estudo da capoeira se aperfeiçoam a cada dia sem perder de vista os seus fundamentos. O interessante é notar que a capoeira não perde sua energia, tão explosiva e cativante, com isso. Nossa arte está amadurecendo sem perder seus sentimentos e nem a sua essência popular. Graças ao trabalho de tantos mestres, professores e alunos, a capoeira continuará sendo uma arte do povo e seguirá com o mesmo Axé dos tempos de outrora.



(Soldado Capoeira)

terça-feira, 7 de setembro de 2010

A arte da vadiação

rebeldia em forma de festa

“vamo vadiar, vamo vadiar…”

Ouve-se muito falar do termo "vadiação" na capoeira . As canções, cantigas, quadras e corridos sempre estão chamando o jogador para vadiar.
Na capoeira, vadiar significa brincar, jogar descontraidamente, usar o espaço da roda para uma espécie de confraternização entre os praticantes. Essa é uma característica comum a diversas manifestações afroculturais presentes no Brasil, como o samba, o jongo, o maracatu, o lundu, coco de roda, etc...
A origem dessa característica vem, como já cantava Clara Nunes, "desde o tempo da senzala". Naquela época de tanto sofrimento para os negros o trabalho era uma lei cuja violação era punida com violência e crueldade. Trabalhava-se exaustivamente e o trabalho chegava a ser confundido com a própria vida.
Os escravos que fossem pegos sem trabalhar eram chamados e tratados como vadios. Logo, as atividades que não fizessem parte da rotina de trabalho eram entendidas como "vadiação", uma afronta a lei do trabalho, mesmo quando permitidas pelos senhores de engenho. A permição era, obviamente, uma estratégia para que através dessas atividades os escravos, sentindo-se livre por alguns instantes, descarregassem sua ânsia de liberdade e esquecessem de se rebelar ou fugir.
Mas, era justamente nesses momentos que os negros se faziam resistentes ao domínio que lhes tentavam impor. Mantinham sua cultura viva e forte, sua crença, suas lutas de defesa e ataque (que disfarçadas em dança se tranformariam na capoeira), congregavam a união do grupo, etc...
A vadiação era uma das formas de rebeldia e resistência dos negros, que dessa forma conseguiam burlar a vigilância constante de feitores e jagunços, e em forma de festa, "debaixo do nariz" de seus carrascos, conspiravam a sua revolta.

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Jogar Capoera ou Dance de la Guerre, Rugendas, 1835

Fugas, motins, capoeira... logo, as autoridades iriam perceber o perigo representado pela vadiação e passariam a vigiá-la ainda mais, desestimulá-la e persegui-la. Mas, o negro já não podia mais deixar de vadiar e mesmo sob a cruel perseguição arranjava formas de praticar suas atividades.
A vadiação, era uma necessidade, uma válvula de escape para a tensão do dia-a-dia das fazendas e engenhos, uma forma do escravo se declarar e se sentir livre.
Um texto de Eunice Catunda, contido no livro "O Barracão do mestre Waldemar", do pesquisador Frede Abreu, nos fala justamente dessa urgência que o povo tem de praticar a sua cultura. Para ela a arte, a cultura popular é mais verdadeira, pois não é só uma forma de diversão, e sim uma necessidade imprescindível.

Com o passar do tempo a vadiação tomaria forma e corpo se transformando em samba, em capoeira, em danças religiosas, como o afoxé e o jongo, enfim em arte popular, viva e forte, e como, cantou Clara Nunes, "quanto mais chicote estala, e o povo se encurrala, o som mais forte se propala". O Candomblé, a Umbanda e afins também fazem parte dessa cultura, mas, não podemos, por respeito, citá-las como vadiação, afinal são práticas religiosas e conduzidas como dever, como obrigação, como trabalho pelos negros. São práticas também símbolos de resistência e de admirável diversidade e riqueza, fontes infindáveis de cultura.

carybe-vadiacao47_g Vadiação, gravura de Carybé

Curiosa é também a relação que a própria classe dominante tinha com as manifestações afro, por vezes perseguindo e proibindo, e em outras vezes se utilizando das mesmas práticas em prol de algum interesse. Como por exemplo, a capoeira era proibida, mas diversas autoridades contratavam os capoeiristas para fazer o papel de guarda-costas ou de jagunços políticos.

Enfim, vadiar para os senhores de engenho era uma simples forma de diversão e distração dos escravos que se tornou perigosa com o passar do tempo. Vadiar para os escravos era uma forma de festejar, resistir e rebelar, era uma verdadeira arma de guerra.

Vadiação é rebeldia, uma rebeldia em forma de festa, uma rebeldia em forma de arte.

(Soldado Capoeira)

Bibliografia:
- música:
Brasil Mestiço, Santuário da Fé, de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro
no álbum Brasil Mestiço, de Clara Nunes,1980

- livro:
"O Barracão do mestre Waldemar", de Frede Abreu, Organização Zarabatana, Salvador, 2003.

domingo, 8 de agosto de 2010

Zé Pelintra e a Capoeira

Não é segredo pra ninguém que boa parte da cultura brasileira descende da mãe África. Observamos na religiosidade, na música, na comida, nos costumes, etc..., uma forte influência daqueles que vieram ao Brasil como escravos e acabaram por se misturar aos outros habitantes, nativos ou não, para formar o povo que hoje chamamos de brasileiro.
Por isso, podemos dizer que a capoeira, o samba, o maracatu, a capoeira, a umbanda e o candomblé, o frevo e tantas outras manifestações culturais são fruto dessa mistura, algumas mais influenciadas pelo lado indígena, outras pelo lado europeu, a maioria delas pelo lado africano. A miscigenação criou uma cultura mestiça.
Na Umbanda, por exemplo, encontramos Zé Pelintra que é um forte exemplo dessa mestiçagem: o malandro, negro de terno branco e punhal de aço puro, mestre do Catimbó (um culto nordestino de origem indígena), sambista e capoeirista. É um fiel representante de uma cultura africana resistente e sobrevivente em solo brasileiro. Nordestino ou carioca, praticante do Catimbó, da Umbanda ou do Candomblé, anda sempre com suas guias dedicadas a seu Orixá no pescoço - diz-se em um de seus mais famosos pontos da Umbanda e Catimbó, que "foi criado por Ogum Beira-Mar, em nome de Deus e de todos Orixás". Na aba de seu chapéu, encontramos ainda uma pena vermelha, uma homenagem ao Orixá mensageiro Exu.



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Zé Pelintra e Mestre Leopoldina: o mestre era um grande devoto de Seu Zé


Seu Zé, como é carinhosamente chamado por seus admiradores, é também um conquistador nato. Conhecedor da noite e dos perigos da vida, anda sempre com seu lenço no pescoço e sua navalha alemã no bolso.

Não é preciso ser capoeirista para saber que muito dessa personalidade de Seu Zé, está ligada também à personalidade histórica do capoeirista. Se retornarmos para um segundo momento na história da capoeira, pós-abolição, vamos encontrar entre os praticantes da arte justamente os malandros, que, sendo exímios capoeiristas, sabiam como escapar de qualquer perigo e estavam sempre atentos ao caminhar pelas ruas. Os capoeiristas também sempre foram "conquistadores natos" do mulherio.
Ainda que afirmar isso nos idas de hoje seja tão polêmico, era no passado também muito natural que os praticantes da capoeira fossem praticantes de alguma religião afrobrasileira, uma vez que essas religiões estão fortemente ligadas ao universo de onde eles e a própria capoeira vieram. Mais do que uma simples prática, a religiosidade do povo africano não é apenas vivida no espaço de um terreiro ou um templo, é algo levado para o dia a dia, não é só uma religião, mas também uma forma de viver e de ver o mundo. E se hoje o preconceito é grande, imagine então naquela época...



Um pouco mais a frente na história, encontramos entre os angoleiros figuras tão malandras quanto Seu Zé, principalmente na capoeira Angola, onde os malandros chegavam em seus ternos impecáveis, chapéu de lado, e jogavam sem que uma mancha de poeira sequer maculasse o branco de suas roupas.



Vários pontos do malandro Zé Pelintra tratam de sua relação com a capoeira, como esse:



"moça não tenha medo do seu marido
se ele é bom na faca, eu sou no facão
se ele é bom na reza, eu na oração
se ele bate em cima, eu vou na rasteira
sou da capoeira"



Tais pontos - ponto é como se chama uma cantiga na Umbanda - falam do mundo de Seu Zé, um mundo cheio de perigos, mas também cheio de diversão. Tal qual a capoeira: numa roda um capoeirista pode se divertir, mas sabe dos perigos que enfrentará. E é aquele que melhor usar a malandragem que conseguirá se sair melhor na roda, escapando das rasteiras e das investidas "na maldade", como se diz na capoeira, dos outros jogadores.

A tão famosa "mandinga", uma energia quase palpável na capoeira, que todo capoeirista já sentiu, é uma energia herdada dessa época em que era preciso mais do que esperteza e habilidade no jogo, mas também - opinião própria - uma proteção espiritual para o capoeira. Negro, pobre de recursos materiais, mas rico de recursos culturais, e discriminado, perseguido pela polícia, pelo preconceito, por outros capoeiristas... A mandinga é uma energia que vem da época em que o negro escravo precisava fugir da senzala e lutar pela liberdade e para isso contava com um auxílio divino. Então, por mais incrível que pudesse parecer, o escravo e o malandro conseguiam escapar das mais inacreditáveis situações...

Este é um assunto bastante complexo e espero voltar a tratar dele em breve. Para finalizar, por hoje, digo que a mandinga e a malandragem sempre serão pilares básicos nos fundamentos da capoeira. Espero que tenham bom senso e leiam este texto livres de preconceitos e mesquinharias... Axé!

(Soldado Capoeira)




Continua...



Bibliografia -pra quem se interessar indico estes livros:



Malandro Divino - a vida e a lenda de Zé Pelintra, personagem mítico da Lapa carioca, de Zeca Ligiero



Os fiéis da navalha, de Adriana Albert

sábado, 26 de junho de 2010

Na volta que o mundo dá…

(um conto de malandragem, malícia e capoeira)

CAPÍTULO I – QUEM APANHA NÃO ESQUECE

O dia amanheceu nublado naquela manhã. As nuvens escuras e o frio eram um convite para se ficar em casa.
Entretanto, mesmo com o leve sereno e as ruas cheias de barro, um grupo de meninos do Morro da Mangueira ousou sair a rua para brincar, em meio aos xingos de suas mães descontroladas.
Corriam para lá e para cá, nas vielas, pulando cercas e invadindo jardins, deixando os cachorros da vizinhança muito irritados a latir.
Foi quando que, como num acontecimento programado pelo destino, cruzaram com outro bando de meninos um pouco mais velhos, do Morro do Urubu, que passava por ali apenas para desafiar a molecada da Mangueira.
Os dois grupos pararam no mesmo instante e ficaram a se encarar. José, líder dos meninos da Mangueira tomou a  frente do seu grupo, ao lado de Tião, seu braço direito. Joca, líder do outro bando, também tomou a frente. Um pesado clima de suspense pairou no ar.
- Os maricas vão correr? - desafiou Joca, provocando risadas de escárnio entre os seus. Mas José, cheio de coragem retrucou uma ordem para os companheiros:
- Dessa vez ninguém corre!

Os grupos já se conheciam a tempos, a mesma história sempre se repetia por aquelas vielas. O grupo de Joca aparecia e aterrorizava os meninos mais novos do Morro, sempre que a rapaziada mais velha estava ausente e impedidos de defendê-los. E dessa vez, José, que sempre corria e nunca era pego, resolveu enfrentar seus algozes. Porém, não adiantou a sua ordem, todos se escafederam o quanto antes e apenas quem ficou ao seu lado foi Tião, seu bravo amigo. Joca e seu bando também permaneceram ali, admirados da ousadia dos dois pirralhos.
    Ficaram ainda mais surpresos quando José e Tião partiram ao ataque, quase ao mesmo tempo. Empurraram seus inimigos e saíram a soltar chutes e golpes de capoeira, que aprenderam com os malandros do morro.
José ainda conseguiu derrubar um deles na rasteira, mas não houve jeito, mesmo com tanta valentia, os golpes foram em vão. Joca e os seus apenas caçoaram da tentativa dos meninos e rapidamente os colocaram ao chão com bandas e empurrões. Jogaram os numa poça de lama na rua e os humilharam, não os deixando levantar. A cada tentativa de ficar de pé eram novamente derrubados.

Ficariam ali, nesse estado deprimente, não fosse uma moradora da vizinhança, que, incomodada com a algazarra, tivesse saído a bravejar xingamentos na janela. O grupo de Joca correu imediatamente, e José e Tião ficaram ali, imóveis no chão por alguns momentos, a ouvir os impropérios daquela insensível senhora. Levantaram devagar, sem ter coragem de se encarar, e caminharam lentamente, em silêncio. Sujos por fora e se sentindo um lixo por dentro. Ao chegar em suas casas, ainda apanhariam de sua mães, de certo, pela sujeira na roupa.
Antes de se despedirem, se olharam como cumplices de uma futura vingança. Um misto de ódio e vergonha dominando espíritos tão jovens.

O tempo passou, rápido como um piscar. A infância acabaria e não conseguiram se vingar de Joca, como queriam. O desejo de vingança, porém, não morreria em seus corações e o episódio selava para sempre o destino dos três.
José, Tião e Joca. Na volta do mundo ainda iriam se encontrar.

CAPÍTULO II – O LENÇO CAIU DO PESCOÇO

Uma bela morena dos olhos da cor de mel. Apertada em um vestido vermelho muito  justo, deixando evidentes suas sinuosas curvas. A morena, nascida em uma comunidade pobre, num dos morros da cidade do Rio de Janeiro, aprendera desde cedo a usar de sua beleza para se sobrepor no perigoso mundo em que vivia.
Com uma pose provocante, desfilava pelas ruas da Lapa, rebolando e lançando olhares lascivos aos marujos, trabalhadores da estiva e malandros que ali frequentavam, distraindo-lhes a atenção para arrancar-lhes o lenço do pescoço e em seguida atingi-los com uma letal navalhada. Mais de um coração já fora dilacerado por sua cruel formosura.
Sabia como seriam seus relacionamentos antes mesmo de começá-los. Atraía um homem e o fazia se apaixonar por ela, tirava dele todo o dinheiro que pudesse e depois arranjava outro que lhe oferecesse melhores condições. Afinal por aquelas bandas, poucos conseguiam manter por muito tempo os caprichos de donzela que ela exigia. Então, no duelo que ela provocava, podia sair até morte, como de fato já houvera ocorrido. Adorava ver dois homens disputando-a.
Vez ou outra parava e sambava num botequim, levando alguns quase á loucura com seus quadris remexendo freneticamente. Sempre estava acompanhada de algum possível pretendente, mesmo quando já tinha compromisso - tinha que se garantir, caso ficasse sozinha repentinamente. Na verdade sabia que homem não iria faltar, mas adorava ser desejada. Era uma mulher que se julgava conhecedora da "malícia" da vida.
Foi nesse meio que conheceu Tião, estivador do porto carioca, capoeira, frequentador assíduo da noite na Lapa - mais uma de suas vítimas. Se aproximou devagar, enquanto fumava delicadamente um cigarro, fazendo quase que imperceptíveis movimentos em seus lábios, pulsantes de um batom excessivamente vermelho. Foi rodeando, cercando o estivador, como uma fera faz com sua presa. Sambou e dançou até que Tião, já completamente dominado pelo jogo da morena, viesse lhe pedir a companhia.
O moço, que gostava de se sentir um "Dom Juan", conquistador do mulherio, mordeu facilmente a isca de Tereza. Conversou com a morena olhando-a como se lançasse flechas para lhe atingir o coração, na ilusão de que era ele quem tinha o controle da situação.
Naquela noite caminharam juntos na escuridão de algumas ruas da região, onde casais apaixonados podiam se amar com certa privacidade. Mas, Tereza, usando mais um truque, se fez de difícil e não cedeu aos seus carinhos. Na noite seguinte, enfim, se amaram intensamente por horas e horas, sem parar. Tião sem perceber tinha deixado o lenço cair do pescoço, e assim a boa vida de Tereza estava garantida por mais algum tempo. Até ser desferido o derradeiro fiel de navalha.

***

Tião se apaixonou de tal forma pela morena que se rendia a todos os seus caprichos, fazia de tudo para agradá-la: dinheiro, presentes, roupas... Demonstrava suas habilidades de capoeira para a amada arranjando brigas e mais brigas com outros boêmios pela noite, onde fazia questão de exibir a "sua" morena. Se desconfiasse que alguém a olhava, estava preparado para fazer o infeliz engolir os olhos que a desrespeitaram. Sempre mulherengo, foi abandonando aos poucos a companhia de todas as outras damas para se dedicar única e exclusivamente a Tereza.
José, seu amigo de infância, malandro, que conhecia melhor do que ninguém a malícia da noite, percebeu imediatamente as intenções da tal morena. O domínio, a hipnose exercida por Tereza em seu camarada, eram os indícios de que o amigo estava prestes a se meter em uma enrascada. Sabia que em pouco tempo, ele não teria mais onde arranjar dinheiro para satisfazer sua amada, e certamente, abandonaria sua vida de trabalhador para se entregar de vez ao crime. O malandro sabia, por experiência própria, como era essa vida de capanga, por vezes assassino profissional e justiceiro e não a desejava para Tião. Procurou alertá-lo de todas as formas para que se afastasse de Tereza.
A fama da morena, também, a precedia na noite. Tião, porém, se ofendia profundamente quando o amigo, ou qualquer um, tocava no assunto e ameaçava terminar a amizade, caso ele insistisse. Tereza também aproveitava para fazer a cabeça do companheiro contra José, dizendo que aquilo tudo era despeito por ele não ter uma mulher como ela para o amar. Tião estava cego de paixão.

Para ele, não havia motivos para Tereza não se sentir a mais feliz de todas as mulheres. Mas, como era de se esperar, ela não estava contente com o carinho e a atenção dele. Provocava outros homens, até mesmo quando nos passeios com Tião, e se deliciava em vê-lo defendendo-a. Caminhava pelas praças e ruas, de noite ou de dia, justamente para despertar o desejo dos homens. Por isso, era uma questão de tempo para que Tião fosse traído.
Certa vez, o pobre homem teve que se ausentar por uns dias, fugindo da polícia, que o caçava por ter ferido o desafeto de um político, do qual se tornara capanga, e a morena aproveitou para sair pela noite a procura de algum outro homem que a quisesse. Foi para a porta dos cassinos e casas de jogo, e por ali ficou, rebolando e fumando seu cigarro. Não demorou e encontrou mais uma vítima.
Leão de chácara de uma casa de jogos, Joca logo se deixou enfeitiçar. Usando o mesmo artifício, que sempre dava certo, Tereza não se entregou naquela noite, e na próxima, como numa rasteira que é dada na hora certa, tinha Joca caído a seus pés.

O reencontro dos três estava prestes a acontecer. Iê, volta do mundo, camará...

CAPÍTULO III – QUEM MEXE COM MULHER DOS OUTROS, NÃO TEM A VIDA SEGURA

As ondas do mar chegavam de mansinho na areia, fazendo um barulho calmo... Diferente da alma de Tião naquele momento, que estava como um barco envolto em uma tempestade. Sentado na beira do mar, o olhar distante denunciando a angústia interior.
- Acho melhor que saia da cidade novamente por uns dias, - aconselhou José, que estava de pé alguns passos atrás - o Joca trabalha pra uns políticos influentes, certamente não vai engolir a surra que você o aplicou...
Tião continuou quieto, como se não tivesse ouvido as palavras do amigo. A noite seguia, cada vez mais fria, para se aquecer Tião e José bebiam um pouco de conhaque.
Finalmente Tião rompeu o silêncio.
- Você não se lembra do que esse mesmo infeliz nos fez, quando eramos crianças? Lembro que tinhamos prometido vingança.
- Mas o tempo passou, e nos tornamos adultos...
- Sim, Zé, mas agora é diferente e eu acho que chegou a hora da vingança. Cada soco que eu dei nele hoje, me lembrava daquele dia...
Naquela noite, horas antes, Tião tinha acabado de voltar para o Rio, e foi procurar Tereza. Quando chegou na casa dela ficou sabendo que tinha saído. Percorreu a noite a procura da amada, mas teve uma desagradável surpresa, ela estava nos braços de Joca, seu antigo desafeto. O sangue subiu a cabeça, e Tião o espancou, com rabos de arraia, socos, cabeçadas e pontapés. Joca até tentou se defender, visto que também sabia um pouco das temidas pernadas da capoeira, mas nessa arte, Tião tinha fama de ser imbatível. Como estavam numa área movimentada, perto dos cassinos, os guardas logo vieram para acabar com a confusão, e Tião fugiu e agora estava ali.
- Esqueça isso amigo. Essa Tereza não vale nada, Joca não teria ficado com ela se ela não quisesse. E garanto que foi ela que o provocou. Essa história do passado, também, já foi. Você já teve hoje a oportunidade que queria, e o humilhou na frente de todo mundo.
- Sim, mas agora ele vai aprender a não mexer com mulher dos outros - disse isso e se levantou, no rosto a expressão da raiva. Retirou a navalha do bolso, como que para mostrar seu ideal ao amigo e rumou novamente para a cidade.
- Não faça isso Tião, você vai se arrepender! - José ainda tentou.

No caminho, Tião só conseguia pensar no sórdido acontecimento, conseguia quase que ver a sua frente Joca se apoderando de Tereza. Estava transtornado. Quem já amou e foi enganado, consegue imaginar como ele se sentia.
Não foi difícil encontrá-los novamente. Na casa de Joca as luzes estavam acesas. Tião arrombou a porta num pontapé e se dirigiu para o quarto, onde ainda encontrou Tereza cuidando do amante.
- Vadia!
Quando a empurrou e partiu com a navalha na mão para por fim a vida de Joca, ele já estava previnido e rapidamente puxou o gatilho do 45. Tião cambaleou para trás, tentando se apoiar nos móveis do quarto. Antes de cair, rasgou o rosto de Tereza com a navalha em sua mão descontrolada. O estampido do tiro e o grito de Tereza foi ouvido de longe.

A polícia chegou, pouco tempo depois. Do outro lado da rua, José ficou a observar o barraco. Com sua justiça de malandro do morro, já pensava na melhor forma de se vingar pelo amigo. Nos dias que se seguiram, José cuidou do enterro de Tião e Joca, que tinha favores para cobrar de políticos influentes, conseguiu se livrar de qualquer condenação, alegando legítima defesa. Tereza ostentava no rosto os curativos do corte que certamente lhe deixaria uma incômoda cicatriz no rosto, e isso lhe fazia amaldiçoar Tião sempre que se lembrava do ocorrido.

CAPÍTULO IV – TUDO NO MUNDO É PASSAR

O malandro José também era filho de malandro. Sua mãe lhe deu à luz muito cedo, e teve de o criar sozinha. Sempre lhe contava que seu pai era um homem bonito, namorador e que teve muitas mulheres, mas que era um canalha e a abandonou tão logo soube que estava grávida. Dizia-lhe que seu pai era valente, adorava arranjar confusão a troco de nada.
No fim das contas, José, que sempre teve em mente uma figura idealizada de seu pai, acabou por se tornar aquilo que achava que ele era: valente, bom na capoeira, namorador. 
Quando o assunto era negócios, tinha de ser impiedoso com os desafetos dos políticos que lhe contratavam por guardião. Mas, numa estranha ética, avaliava sempre do que o infeliz era realmente merecedor e assim agia. Era fiel a seus amigos e protegia também muitas mulheres da vida, as quais lhe ofereciam o coração e alguns tostões.
Desde a infância mostrava sua coragem, como quando enfrentou junto de Tião o bando de Joca. Para ele, o episódio morrera há muito tempo, mas os últimos acontecimentos faziam seu coração pedir justiça. Sabia que o mundo dá voltas, e se hoje alguém está se dando bem, certamente isso não irá durar para sempre. Era nisso que baseava toda a sua filosofia de vida, a sua fé. Por isso o malandro tinha o zelo de não errar, e também tinha a paciência de esperar a hora certa de agir.

Conhecia diversas prostitutas na noite carioca, muitas delas conheciam também Joca e Tereza. Obteve delas informações de que Joca, enquanto trabalhava no cassino, aproveitava muitas vezes da bebedeira de ricos frequentadores para lhes assaltar a carteira, quando estavam distraídos. Obviamente, Joca tomava o maior cuidado com isso. Mas José deixou uma de suas "amigas" incumbida de lhe avisar quando ele estivesse para dar o "pulo do gato". Como já havia passado bastante tempo desde a morte de Tião, Joca afrouxara a vigília sobre a possível vingança de José.
E não deu outra, avisado de que ele aproveitara a distração de um homem rico e seus capangas, com as mulheres e a jogatina, para lhes roubar, José chamou a polícia. Dessa vez não houve escapatória, se Joca tinha suas alianças entre os políticos influentes, o que lhe rendia proteção contra as autoridades, este senhor era ainda mais influente. Joca foi pego em flagrante. Antes de ser preso, apanhou dos policiais e dos capangas do senhor. De nada lhe valeu a capoeira, o pouco de capoeira que sabia, contra dez, quinze homens, alguns também exímios nessa arte.
José fez questão de aparecer para vê-lo saindo algemado do cassino. Foi preso, e amargaria duros dias na prisão, onde, se soube depois, foi hostilizado por outros detentos. Numa das surras que levou, lembrou os dias da infância, onde humilhara dois meninos naquela manhã nublada no Morro da Mangueira, justamente os responsáveis por sua prisão - vingador e vingado, José e Tião.

Tereza ficou inconsolada. A cicatriz em seu rosto apagara-lhe a vontade de se cuidar. Não se julgava mais capaz de seduzir um homem e chorava horrores toda vez que se olhava no espelho. Sua sorte era a de que Joca ainda a sustentava, mas, e agora, se ele estava preso? Entrou em desespero quando percebeu que os homens não mais a queriam. Em pouco tempo perdeu as belas formas de seu corpo, devido a depressão em que entrara.
Passara a viver com dinheiro das jóias ganhadas em seus tempos de glória, que vendia para continuar mantendo um certo luxo em sua vida. Quando acabaram as jóias, não teve outra alternativa: colocou um vestido curto, passou um baton fortíssimo em seus lábios, e descabelada e em meio a lágrimas de desgosto se encaminhou para uma esquina, procurando um homem que lhe pagasse o que fosse por uma noite de amor. Nada muito diferente do que já fazia, mas sem o luxo e o conforto. Não arranjava grandes clientes, isso quando não apanhava e ficava sem um tostão.

Castigos justos? Quem poderá dizer?

Enquanto isso, o malandro José, em seu terno branco, chapéu jogado de lado e uma bengala para complementar o estilo, caminhava pelas noites da Lapa, com seu gingado e sua malícia. Sentia-se aliviado, a vingança é mesmo um delicioso prato que se come frio. Mas José era malandro, não deixava de ficar atento para qualquer surpresa que pudesse surgir na volta que o mundo dá...

FIM

(Soldado Capoeira)

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Filosofando sobre Bimba e Pastinha

(breve pensamento sobre a vida dos Mestres)

O princípio que não tem método vs O Mestre que dá lição

Uma das citações mais utilizadas pelos capoeiristas é a celebre frase que Mestre Pastinha utilizou para expressar seu pensamento sobre a Capoeira, "mandinga de escravo em ânsia de liberdade, seu princípio não tem método e seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista". Mas, afinal, o que será que Pastinha quis dizer?
A afirmação mostra que para Pastinha, o ensino da Capoeira não devia seguir um método rígido e padronizado, mas respeitar a invidualidade de cada capoeirista. Para ele, cada um tem sua mandinga, seu jeito de jogar, e é essa naturalidade o caráter primordial, já que remete ao próprio ideal de liberdade da capoeira. Mestre Pastinha corroborou essa idéia por diversas vezes, como em "cada um é cada um, ninguém joga do meu jeito". Ele valorizava também a tradição, a ancestralidade da Capoeira, uma espécie de devoção pelos fundamentos da chamada "Capoeira Mãe", como entitulou a Angola, e foi com essa filosofia que conquistava o respeito e admiração de intelectuais e figuras do meio acadêmico.

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Mestre Pastinha e Mestre Bimba

Como contraponto, nessa época, a Capoeira Regional de Mestre Bimba era uma novidade que fazia grande sucesso entre os capoeiristas, como o faz até hoje. Mestre Bimba criou um método, para ensinar os fundamentos de sua Capoeira, criando sequências, toques e toda uma formalística, como batizados e graduações. Essa espécie de formalização, fazia parte de uma vontade do Mestre de valorizar a Capoeira como luta, como arte marcial eficiente, conquistando também, dessa forma, os meios acadêmicos.

Porém, se engana quem pensa que os dois Mestres eram tão rígidos assim. Podemos encontrar diversos paradoxos. Por exemplo, apesar de Pastinha defender os rituais e pregar que a Capoeira era mandinga, deu à sua academia o nome de CECA - Centro Esportivo de Capoeira Angola. E, Mestre Bimba, que deu à sua academia o nome de Centro de Cultura Física e Luta Regional Baiana, usou como símbolo a Estrela de Salomão, salientando o lado filosófico da capoeira, em suas quadras e corridos, Bimba também cantava a mandinga do jogo, criou as festas de batizado e uma série de rituais, como a hora de escolher o apelido do aluno, que criava um clima quase espiritual.

Iê , viva meu Deus...eê, viva Deus do Céu, camará

Bimba e Pastinha são a própria imagem das duas vertentes principais da Capoeira. Talvez se só tivesse existido Mestre Bimba, a Capoeira Angola não tivesse chegado tão viva aos dias de hoje. E, por outro lado, se só tivesse existido Mestre Pastinha, a Capoeira como um todo poderia não ter tomado o mundo, pois o veículo principal para que isso acontecesse, foi, sem dúvida, a Capoeira Regional.

A vida dos dois Mestres também é cheia de coincidências. Por exemplo, os dois aprenderam Capoeira com africanos, Bimba com Bentinho e Pastinha com Benedito. Bentinho era capitão da Cia de Navegação Baiana, Pastinha serviu a Marinha. Ambos deram suas vidas pela Capoeira, e no fim se viram desamparados.
Bimba, faleceu longe de sua terra, em Goiânia, se sentindo enganado pelas autoridades. Pastinha, em Salvador, também foi enganado pelas autoridades, que prometeram uma reforma, mas nunca mais lhe devolveram o espaço de sua academia, e faleceu, cego e abandonado num abrigo. O verso que Bimba tanto cantou, nunca foi tão cruel de ouvir, "passar bem, passar mal, mas tudo no mundo é passar, camará..."

E, felizmente, essa fase turbulenta também passou. A Capoeira cresceu e deu "a volta ao mundo". A história de ambos os Mestres é cantada hoje por todas as partes, imortalizando-os em cantigas, ladainhas e canções, para serem lembrados para sempre no local em que mais gostavam de estar, as rodas de Capoeira.

Pode até soar como clichê, mas não deixa de ser a mais pura verdade: a Regional e a Angola são duas faces que coexistem para formar uma só Capoeira. Bimba e Pastinha, embora pareçam tão diferentes no estilo, métodos e idéias, são igualmente reis, guardiões, enfim, Mestres dessa arte-luta-filosofia e tudo mais Capoeira.


(Soldado Capoeira)

sábado, 8 de maio de 2010

O negro e o Brasil do século 19- sobre as gravuras de Rugendas

Rugendas foi um dos grandes pesquisadores que nos deixou uma vasta imagem do que foi o Brasil do Século 19. Em suas gravuras podemos visualizar manifestações do cotidiano de um Brasil "pitoresco".
E sobretudo, podemos ter uma idéia bem clara da origem de diversas manifestações culturais afrodescendentes presentes hoje no Brasil. Suas gravuras refletem reuniões, confraternizações de escravos, vigiadas ou não por feitores e jagunços, a mando dos senhores de engenho.
Essas reuniões eram chamadas genericamente de "batuque", nesse ambiente os negros se sentiam seguros, mesmo que sob a vigilância constante, para praticar suas festas e rituais, e disfarçadas em dança, suas lutas trazidas da África. Tais comemorações eram permitidas pelos senhores para que o negro se distraísse e, aliviado do estresse do trabalho exaustivo, não pensasse em se rebelar. O ambiente servia também para misturar as culturas, uma vez que como forma de dominação, os escravos eram comprados cada qual de regiões diferentes, para evitar ao máximo possíveis rebeliões - essa receita porém, não mostrou funcionar tão bem, já que, traçando formas mais eficientes para se defender e lutar, oriundas justamente dessa mistura, os negros fugiam, se rebelavam, resgatavam seus irmãos para os Quilombos, e, também culturalmente, se mantinham resistentes a dominação que tentavam lhe impor.
Nas gravuras de Rugendas, encontramos os princípios da Capoeira. Esboços das primeiras rodas, movimentos e golpes, que se assemelham ainda com a luta dos dias dias de hoje. Podemos verificar também a presença da musicalidade, atributo de quase todas as manifestações africanas, que acompanha a capoeira desde os seus primóridios. A presença da mulher e o caráter lúdico das reuniões, é também uma forte característica observada. Daí, também se originou a extinta luta conhecida como batuque e é o princípio do samba.
Esse tipo de reunião, não acontecia somente no Brasil. Em todos os países onde houve a diáspora africana, encontramos registros semelhantes, e em todos eles, foi deixada como herança manifestações semelhantes ao samba e a capoeira.
Se observarmos a forma de organização desses encontros, podemos notar que sempre acontece a formação de uma roda, no entorno da qual estão os instrumentistas e o meio fica livre para dançarem ou lutarem. É a mesma organização que se encontrava na luta do batuque, extinta na primeira metade do século 20, e se vê ainda hoje na Capoeira e nas rodas de samba.
As gravuras nos mostram a matriz de uma futura sociedade brasileira fortemente marcada pelo trabalho e pela festa. Ao observarmos as gravuras, notamos o espírito festivo do negro, a sua forte performance corporal e musical, elementos que também formam a "personalidade" da cultura brasileira.

Jogar Capoeira ou Dança da Guerra - 1835 (Reprodução - Johann Moritz Rugendas. Viagem pitoresca através do Brasil. 

Jogar Capoeira ou Dança da Guerra - 1835 (Reprodução - Johann Moritz Rugendas. Viagem pitoresca através do Brasil.)


(Soldado Capoeira)

sexta-feira, 7 de maio de 2010

A FACE MALANDRA DA CAPOEIRA

Um dos valores mais fortes presente na personalidade dos capoeiristas é a malandragem. Ela é a virtude que ajuda o capoeira a se sair bem das "saias justas", seja na Roda, seja na vida. A malandragem na Capoeira é alçada quase que como um "dom divino", ao lado da famosa mandinga, a proteção espiritual dada a poucos capoeiristas.
A malandragem está presente na Capoeira desde os seus primórdios. Com o fim da escravidão, uma multidão de escravos recém libertos se dirigiu para as áreas urbanas, criando comunidades. A falta de apoio do governo, que simplesmente libertou os escravos das fazendas, mas não lhes ofereceu uma nova forma de ganhar a vida, fez com que essas comunidades já nascessem na miséria.
Nesse ambiente, surge a figura do malandro, sempre em seu terno impecável de linho branco, seu chapéu de lado, bom no batuque e na capoeiragem, arrumando as mais variadas confusões, sempre escapando da polícia e arranjando formas alternativas de ganhar a vida. O malandro, com seu jeito descolado de ser, representa a figura do negro que conseguiu se sobrepor a um destino de pobreza a que parecia estar fadado. É o estereótipo do homem que consegue, com uma ginga de corpo na vida, escapar e se dar bem em várias situações em que tudo parece estar perdido. Homem namorador, que deixa corações apaixonados por onde passa.
Essa malandragem é o que fez a Capoeira sobreviver as repressões policiais e chegar tão forte aos dias de hoje. Foi a esperteza dos malandros, sempre escapando da polícia, que garantiu a sobrevivência da atividade nos primórdios da República. Mestre Bimba e Mestre Pastinha foram sublimes malandros ao conquistar as classes mais altas e acadêmicas, descriminalizando a Capoeira e a afirmando junto a toda a sociedade, que a discriminava e reprimia. E, se voltarmos ainda a época da escravidão, veremos que uma primeira nuance dessa malandragem foi que permitiu ao negro praticar sua luta, habilmente disfarçando-a em dança. Com esse mesmo espírito, o negro conseguia, numa distração dos feitores, fugir para a mata, escapar dos capitães do mato e encontrar os secretos Quilombos.
A malandragem é uma das principais características da Capoeira.
Num contexto ainda maior, a malandragem é a arma com a qual os negros, e as classes menos favorecidas em geral, sobrevivem ao mundo cruel das classes dominantes. Com seu jogo de cintura, o malandro sai por cima daqueles que, equivocadamente, acreditam dominá-lo.


(Soldado Capoeira)

Vejam, para efeito de estudo, alguns textos interessantes sobre alguns malandros… Esse de João Mina é uma raridade,  um texto muito importante para quem quer aprender os fundamentos da capoeiragem. O de Madame Satã também, conta em poucas palavras a história dele e nos mostra um pouco do ambiente de um Rio de Janeiro cheio de malandragem… Aproveitem!

JOÃO MINA

João Mina quer ver Muleque Bimba na boa capoeiragem
João Mina

Publicado originalmente no jornal Estado da Bahia, em 15 de março de 1948

A notícia divulgada pelo Diários Associados de que o mais famoso capoeirista baiano, Muleque Bimba, que dirige uma escola dessa briga, tornada nacional, pretende vir ao Rio fazer exibições públicas dos nove cortes que inventou, causou sensação entre os profissionais da defesa pessoal. Existe mesmo um movimento para que se efetive a vinda de Muleque Bimba, o sexagenário que ensina a muitos moços de sua terra os golpes sinistros da capoeiragem, sabendo-se até que já foi seu aluno o hoje deputado Juracy Magalhães.
Entre nós, João Mina é o mais velho dos três últimos remanescentes da já remota época das batucadas e capoeiragens que até o primeiro quartel deste século perturbaram a ordem e a tranquilidade públicas. Tem mais de sessenta anos o preto velho e arrasta seus atuais pesados dias ali pelo Estácio.
- Está aqui neste seu criado - diz João Mina para o repórter numa tendinha do morro - um negro que fazia batuque e capoeira no morro da Favela, que é o lugar que nasceu o samba no Rio. Batuque quem fazia era negro de macumba, negro bom de santo, bom de garganta e, principalmente, bom de perna para tirar outro da roda. Tinha batuque todo dia na favela, com a negrada metendo a perna e jogando parceiro no chão, até a polícia chegar. Aí, então, como num passe de mágica, a batucada virava samba, entrando as mulheres dos batuqueiros na roda. Homem não dançava samba. Samba é nome de filha de santo, mas todo mundo de fora que subia o morro procurando mulher, dizia que ia ver samba e por samba ficou a dança que elas dançavam e que era batuque mais mole e bem remexido - era coco.
Assim que a polícia saía, o batuque continuava e os batuqueiros entravam duro na capoeiragem. Pobre do moleque que cochichasse quando o batuqueiro cantasse:

Olha banda
Olha a banda
Negro da ronda

Podia contar que ia levar uma boa jogada, quer dizer, rápida e violenta pernada que o atirava fora da roda, principalmente se tivesse mulher boa perto dele. Mas se o muleque saísse dessa, o batuqueiro sem perder o ritmo do batuque emendava:

Batuqueiro novo
Dava um baú
Pra não perdê o amô...

A banda jogada passava pra banda de frente e o batuque soltava logo um baú no parceiro, atirando o muleque no chão, pelas costas.
Outro corte ruim de defender, pra batuqueiro novo, era a tiririca, quando o mestre cantava:

Tiririca é faca de cortar
Quem não pode não intimida
Deixa quem pode intimá...

Um pé ficava no chão e o outro subia virando com força no pé do ouvido do parceiro. Mas a capoeiragem tinha muitos cortes ruins. Tinha o dourado, a encruzilhada, tinha o rabo de arraia...
- Sim, João Mina, o fulminate rabo de arraia...
- Pois é, meu filho, o rabo de arraia...
Os outros que ouviam, reverentes, a palestra do velho João Mina, fizeram um sinal negativo para o repórter. O homem da tendinha serviu umas doses de cachaça e João Mina continuou:
- Batuqueiro bom brincava na frente do fandango e caninha verde, no carnaval, abrindo ala como se faz hoje diretor de corda de escola de samba. Batuqueiro bom brincava de noite na Praça Onze de Junho, que já foi reduto enfezado de gente do morro.
Um dia, os batuqueiros da Favela tiveram uma arrelia. Houve então, uma separação. Os grandes ficaram na Favela e os outros foram para o morro de Santo Antonio. Casaca de Bronze, capoeira de respeito e capanga de político, uma noite, ninguém sabe porque, nem por ordem de quem, botou fogo em tudo quanto era barracão do morro de Santo Antonio e fugiu, fugiu que até hoje não se sabe notícias dele.
A negrada que ficou sem barraco no morro de Santo Antonio foi toda para o Morro da Mangueira, os homens fazendo batuque e as mulheres sambando. O lugar onde eles levantaram os barracos ficou sendo chamado o Santantoinho de Mangueira. Depois é que vieram para a Estação, Querosene, Salgueiro. Apareceu o samba mesmo, quando Epitácio Pessoa mandou mudar o mulherio da Glória e da Lapa para a Cidade Nova.
Mas por aí, Sampaio Ferraz e Alfredo Pinto tinham dado cabo de muito batuqueiro, de muito moleque de capoeiragem. Isso de escola de samba é coisa nova, coisa boa, de preto, político trabalhador, que não quer mais saber de malandragem, nem de pernada.
João Mina rematou:
- Pois é menino, eu tinha vontade de ver esse tal moleque Bimba, para me lembrar dos velhos cortes do meu tempo...Será que ele briga mesmo?
Descemos o morro e Tancredo Silva, que apesar de moço, é o terceiro dos remanescentes, dissemos:
- Bernardo Sapateiro faltou ao encontro. Ele, que é daquele tempo, ia contar porque João Mina não quis falar do rabo-de-arraia.
- Você não sabe?
- Dizem que numa batucada na Praça Onze, num carnaval, João Mina deu um rabo de arraia num sujeito e ele morreu ali mesmo. João Mina foi para a Detenção e ficou na sombra uns anos. Quando voltou, trouxe a cuíca e nunca mais quis saber de batucada. Era só cuíca. E a batucada virou samba. Depois, Edgard trouxe o tamborim.
Na rua do Estácio, Tancredo Silva ainda disse:
- Olha, menino João não falou que, quando o batuque enfezava, os batuqueiros cantavam:

É ordem do Rei p'ra matar.
É ordem do Rei p'ra matar.

E o rabo de arraia comia solto até morrer o parceiro que estava condenado pela negrada. Essa ordem do Rei entre os batuqueiros vem do tempo em que o Brasil era Reinado e que a capangada tinha ordem para acabar com os pretos que conspiravam.

(Retirado do livro Encontros: Capoeira, de Frederico José de Abreu e Maurício Barros de Castro, editora Azougue Editorial.)

                                              MADAME SATÃ

Madame Satã, o capoeirista João Francisco dos Santos, nasceu no "Morro do Estácio", pelos anos de 1900, no Rio de Janeiro. De família humilde, se criou no porto carioca, onde aprendeu batuque com estivadores negros, descendentes de escravos angolanos, destacando-se seu mestre Gavião, companheiro de Edgar e "Meia Noite".
O maltas cariocas e Guaiamús foram gradativamente extintos com suas gangues, pelo anos de 1908 a 1910, pela polícia. Os que não foram mortos pelos polícias, morreram nos presídios. A figura do capoeirista vadio, malandro, que foi imortalizado pelos sambas da época: "Meu chapéu de lado, tamanco arrastado, como trote de cavalo, lenço de seda no pescoço, navalha alemã no bolso, com caminhar gingado, tomou conta do carioca provocador e eu tenho orgulho de ser vadio". O novo vadio andava sozinho, não mais em gangues, mas temido por sua valentia e violência sutil, zanzando pelos bares da boêmia portuária e morando nos cortiços. Com esta nova postura, o vadio não demonstrava ser uma ameaça, como nos tempos dos maltas. Do Império a República, os capoeiristas foram quase extintos, enquanto que o Estado Novo foi mais tolerante.
Nesta época que surgiu João Francisco, um negro de 1,90 m pesando quase 100 kg de músculos, cabelos longos alisados, elegante, costumava usar pantalona branca, camisa de seda italiana com cores exuberantes, com um grande tamanco de cara de gato. Desde os treze anos vivia nas noites da boêmia da Lapa, sobrevivendo de pequenos furtos, a favores libidinosos com marujos europeus, o que lhe garantia a sobrevivência.
Durante muito tempo foi leão de chácara de cabarés, botequins e cassinos. Quase diariamente se envolvia em brigas, onde mostrava sua destreza, foi quando foi convidado para integrar o grupo de bailado na figura do transformista "Mulata Balacochê", no cabaré "Cu da Mãe" onde logo se destacou, sendo muito aplaudido. Com contrato na bolsa, carteira assinada e salário certo todo fim de mês, além de gordas gorjetas colocadas no seu sutiã, terminavam as batidas policiais por vadiagem, com as brigas com os valentes.
Até que certo dia deparou-se com o marginal "Alberto 28", que lhe aplicou uma coronhada na cara, seguido de palavrões: " veado, puto, marica", etc.
João Francisco se conteve para não perder a oportunidade de ascensão, e se dirigiu para seu quarto de pensão. Ao chegar em seu quarto deparou-se com seu espelho, o rosto ensanguentado, e, as lágrimas se esvaindo em cascata. Foi em busca de "Alberto 28" e com um 38 acabou com um tiro na testa de seu desafeto.
Como recompensa, foi preso e encaminhado para o Instituto penal Cândido Mendes, na Praia de Dois Irmãos, na Ilha Grande, ligada ao município de Angra dos Reis, no sul do litoral do Rio de Janeiro. Esta penitenciária foi construída em 1940, onde eram mandados os capoeiristas desordeiros da época e os presos políticos e criminosos perigosos. Nesta cidadela João Francisco, por dezenove anos, foi preso. Implantou a capoeira na penitenciária, tornando-se uma grande liderança, sendo respeitado por todos.
João Francisco dividiu sua vida em Pigalle, a Casa Nova, o incrível "Cu da Mãe" e o cassino High Life. Recebeu da noite o apelido de "Madame Satã" por sua valentia e o domínio dos golpes de capoeira em sua pernas. Em uma oportunidade matou um malandro, o sambista Geraldo Pereira de mais de 1,90 m, com um soco na nuca.
O rei da vadiagem, Madame Satã, viveu de 1900 a 1976. Morreu, em total miséria, num quarto de cortiço, por enfarte do miocárdio. Mestre Paulo Gomes e Artur Emídio, nos últimos tempos de sua vida, foram um dos poucos amigos que o ajudaram em sua sobrevivência.
João Francisco derrubou com sua canhota, suas navalhas e suas precisas bandas e rasteiras muitos vadios de sua época. O estereótipo do homossexual frágil, efeminado, foi derrubado, pois era mais macho do que muitos homens de sua época. Capoeira não tem preconceito, preconceito é fruto da ignorância.

Bibliografia:

Crônica do jornalista Ronaldo Ribeiro;
Entrevista com o ex-presidiário Júlio de Almeida, que após 68 anos de prisão mora com sua família na Ilha.
Em 1986, tive a oportunidade de visitar a Ilha e conhecer vários moradores.
Entrevista com Edir Virgílio de Lima, o "Dica", funcionário do presídio que hoje vive da pesca e colhendo bananas e abacaxis.
Crônica do Mestre Nestor Capoeira na revista capoeira número 7
Entrevista com o Mestre Paulo Gomes

Contato: Dr. Luiz Carlos K. Rocha:
Tel.: (49) 323 1503

(retirado da revista Praticando Capoeira Ano II, Nº 21 , por Dr. Luiz Carlos Krummenauer Rocha, antropólogo, historiador, filósofo, teólogo, museólogo, phd em sociologia, presidente da Federação Catarinense de Capoeira e da Liga Oeste de Santa Catarina)