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sábado, 26 de junho de 2010

Na volta que o mundo dá…

(um conto de malandragem, malícia e capoeira)

CAPÍTULO I – QUEM APANHA NÃO ESQUECE

O dia amanheceu nublado naquela manhã. As nuvens escuras e o frio eram um convite para se ficar em casa.
Entretanto, mesmo com o leve sereno e as ruas cheias de barro, um grupo de meninos do Morro da Mangueira ousou sair a rua para brincar, em meio aos xingos de suas mães descontroladas.
Corriam para lá e para cá, nas vielas, pulando cercas e invadindo jardins, deixando os cachorros da vizinhança muito irritados a latir.
Foi quando que, como num acontecimento programado pelo destino, cruzaram com outro bando de meninos um pouco mais velhos, do Morro do Urubu, que passava por ali apenas para desafiar a molecada da Mangueira.
Os dois grupos pararam no mesmo instante e ficaram a se encarar. José, líder dos meninos da Mangueira tomou a  frente do seu grupo, ao lado de Tião, seu braço direito. Joca, líder do outro bando, também tomou a frente. Um pesado clima de suspense pairou no ar.
- Os maricas vão correr? - desafiou Joca, provocando risadas de escárnio entre os seus. Mas José, cheio de coragem retrucou uma ordem para os companheiros:
- Dessa vez ninguém corre!

Os grupos já se conheciam a tempos, a mesma história sempre se repetia por aquelas vielas. O grupo de Joca aparecia e aterrorizava os meninos mais novos do Morro, sempre que a rapaziada mais velha estava ausente e impedidos de defendê-los. E dessa vez, José, que sempre corria e nunca era pego, resolveu enfrentar seus algozes. Porém, não adiantou a sua ordem, todos se escafederam o quanto antes e apenas quem ficou ao seu lado foi Tião, seu bravo amigo. Joca e seu bando também permaneceram ali, admirados da ousadia dos dois pirralhos.
    Ficaram ainda mais surpresos quando José e Tião partiram ao ataque, quase ao mesmo tempo. Empurraram seus inimigos e saíram a soltar chutes e golpes de capoeira, que aprenderam com os malandros do morro.
José ainda conseguiu derrubar um deles na rasteira, mas não houve jeito, mesmo com tanta valentia, os golpes foram em vão. Joca e os seus apenas caçoaram da tentativa dos meninos e rapidamente os colocaram ao chão com bandas e empurrões. Jogaram os numa poça de lama na rua e os humilharam, não os deixando levantar. A cada tentativa de ficar de pé eram novamente derrubados.

Ficariam ali, nesse estado deprimente, não fosse uma moradora da vizinhança, que, incomodada com a algazarra, tivesse saído a bravejar xingamentos na janela. O grupo de Joca correu imediatamente, e José e Tião ficaram ali, imóveis no chão por alguns momentos, a ouvir os impropérios daquela insensível senhora. Levantaram devagar, sem ter coragem de se encarar, e caminharam lentamente, em silêncio. Sujos por fora e se sentindo um lixo por dentro. Ao chegar em suas casas, ainda apanhariam de sua mães, de certo, pela sujeira na roupa.
Antes de se despedirem, se olharam como cumplices de uma futura vingança. Um misto de ódio e vergonha dominando espíritos tão jovens.

O tempo passou, rápido como um piscar. A infância acabaria e não conseguiram se vingar de Joca, como queriam. O desejo de vingança, porém, não morreria em seus corações e o episódio selava para sempre o destino dos três.
José, Tião e Joca. Na volta do mundo ainda iriam se encontrar.

CAPÍTULO II – O LENÇO CAIU DO PESCOÇO

Uma bela morena dos olhos da cor de mel. Apertada em um vestido vermelho muito  justo, deixando evidentes suas sinuosas curvas. A morena, nascida em uma comunidade pobre, num dos morros da cidade do Rio de Janeiro, aprendera desde cedo a usar de sua beleza para se sobrepor no perigoso mundo em que vivia.
Com uma pose provocante, desfilava pelas ruas da Lapa, rebolando e lançando olhares lascivos aos marujos, trabalhadores da estiva e malandros que ali frequentavam, distraindo-lhes a atenção para arrancar-lhes o lenço do pescoço e em seguida atingi-los com uma letal navalhada. Mais de um coração já fora dilacerado por sua cruel formosura.
Sabia como seriam seus relacionamentos antes mesmo de começá-los. Atraía um homem e o fazia se apaixonar por ela, tirava dele todo o dinheiro que pudesse e depois arranjava outro que lhe oferecesse melhores condições. Afinal por aquelas bandas, poucos conseguiam manter por muito tempo os caprichos de donzela que ela exigia. Então, no duelo que ela provocava, podia sair até morte, como de fato já houvera ocorrido. Adorava ver dois homens disputando-a.
Vez ou outra parava e sambava num botequim, levando alguns quase á loucura com seus quadris remexendo freneticamente. Sempre estava acompanhada de algum possível pretendente, mesmo quando já tinha compromisso - tinha que se garantir, caso ficasse sozinha repentinamente. Na verdade sabia que homem não iria faltar, mas adorava ser desejada. Era uma mulher que se julgava conhecedora da "malícia" da vida.
Foi nesse meio que conheceu Tião, estivador do porto carioca, capoeira, frequentador assíduo da noite na Lapa - mais uma de suas vítimas. Se aproximou devagar, enquanto fumava delicadamente um cigarro, fazendo quase que imperceptíveis movimentos em seus lábios, pulsantes de um batom excessivamente vermelho. Foi rodeando, cercando o estivador, como uma fera faz com sua presa. Sambou e dançou até que Tião, já completamente dominado pelo jogo da morena, viesse lhe pedir a companhia.
O moço, que gostava de se sentir um "Dom Juan", conquistador do mulherio, mordeu facilmente a isca de Tereza. Conversou com a morena olhando-a como se lançasse flechas para lhe atingir o coração, na ilusão de que era ele quem tinha o controle da situação.
Naquela noite caminharam juntos na escuridão de algumas ruas da região, onde casais apaixonados podiam se amar com certa privacidade. Mas, Tereza, usando mais um truque, se fez de difícil e não cedeu aos seus carinhos. Na noite seguinte, enfim, se amaram intensamente por horas e horas, sem parar. Tião sem perceber tinha deixado o lenço cair do pescoço, e assim a boa vida de Tereza estava garantida por mais algum tempo. Até ser desferido o derradeiro fiel de navalha.

***

Tião se apaixonou de tal forma pela morena que se rendia a todos os seus caprichos, fazia de tudo para agradá-la: dinheiro, presentes, roupas... Demonstrava suas habilidades de capoeira para a amada arranjando brigas e mais brigas com outros boêmios pela noite, onde fazia questão de exibir a "sua" morena. Se desconfiasse que alguém a olhava, estava preparado para fazer o infeliz engolir os olhos que a desrespeitaram. Sempre mulherengo, foi abandonando aos poucos a companhia de todas as outras damas para se dedicar única e exclusivamente a Tereza.
José, seu amigo de infância, malandro, que conhecia melhor do que ninguém a malícia da noite, percebeu imediatamente as intenções da tal morena. O domínio, a hipnose exercida por Tereza em seu camarada, eram os indícios de que o amigo estava prestes a se meter em uma enrascada. Sabia que em pouco tempo, ele não teria mais onde arranjar dinheiro para satisfazer sua amada, e certamente, abandonaria sua vida de trabalhador para se entregar de vez ao crime. O malandro sabia, por experiência própria, como era essa vida de capanga, por vezes assassino profissional e justiceiro e não a desejava para Tião. Procurou alertá-lo de todas as formas para que se afastasse de Tereza.
A fama da morena, também, a precedia na noite. Tião, porém, se ofendia profundamente quando o amigo, ou qualquer um, tocava no assunto e ameaçava terminar a amizade, caso ele insistisse. Tereza também aproveitava para fazer a cabeça do companheiro contra José, dizendo que aquilo tudo era despeito por ele não ter uma mulher como ela para o amar. Tião estava cego de paixão.

Para ele, não havia motivos para Tereza não se sentir a mais feliz de todas as mulheres. Mas, como era de se esperar, ela não estava contente com o carinho e a atenção dele. Provocava outros homens, até mesmo quando nos passeios com Tião, e se deliciava em vê-lo defendendo-a. Caminhava pelas praças e ruas, de noite ou de dia, justamente para despertar o desejo dos homens. Por isso, era uma questão de tempo para que Tião fosse traído.
Certa vez, o pobre homem teve que se ausentar por uns dias, fugindo da polícia, que o caçava por ter ferido o desafeto de um político, do qual se tornara capanga, e a morena aproveitou para sair pela noite a procura de algum outro homem que a quisesse. Foi para a porta dos cassinos e casas de jogo, e por ali ficou, rebolando e fumando seu cigarro. Não demorou e encontrou mais uma vítima.
Leão de chácara de uma casa de jogos, Joca logo se deixou enfeitiçar. Usando o mesmo artifício, que sempre dava certo, Tereza não se entregou naquela noite, e na próxima, como numa rasteira que é dada na hora certa, tinha Joca caído a seus pés.

O reencontro dos três estava prestes a acontecer. Iê, volta do mundo, camará...

CAPÍTULO III – QUEM MEXE COM MULHER DOS OUTROS, NÃO TEM A VIDA SEGURA

As ondas do mar chegavam de mansinho na areia, fazendo um barulho calmo... Diferente da alma de Tião naquele momento, que estava como um barco envolto em uma tempestade. Sentado na beira do mar, o olhar distante denunciando a angústia interior.
- Acho melhor que saia da cidade novamente por uns dias, - aconselhou José, que estava de pé alguns passos atrás - o Joca trabalha pra uns políticos influentes, certamente não vai engolir a surra que você o aplicou...
Tião continuou quieto, como se não tivesse ouvido as palavras do amigo. A noite seguia, cada vez mais fria, para se aquecer Tião e José bebiam um pouco de conhaque.
Finalmente Tião rompeu o silêncio.
- Você não se lembra do que esse mesmo infeliz nos fez, quando eramos crianças? Lembro que tinhamos prometido vingança.
- Mas o tempo passou, e nos tornamos adultos...
- Sim, Zé, mas agora é diferente e eu acho que chegou a hora da vingança. Cada soco que eu dei nele hoje, me lembrava daquele dia...
Naquela noite, horas antes, Tião tinha acabado de voltar para o Rio, e foi procurar Tereza. Quando chegou na casa dela ficou sabendo que tinha saído. Percorreu a noite a procura da amada, mas teve uma desagradável surpresa, ela estava nos braços de Joca, seu antigo desafeto. O sangue subiu a cabeça, e Tião o espancou, com rabos de arraia, socos, cabeçadas e pontapés. Joca até tentou se defender, visto que também sabia um pouco das temidas pernadas da capoeira, mas nessa arte, Tião tinha fama de ser imbatível. Como estavam numa área movimentada, perto dos cassinos, os guardas logo vieram para acabar com a confusão, e Tião fugiu e agora estava ali.
- Esqueça isso amigo. Essa Tereza não vale nada, Joca não teria ficado com ela se ela não quisesse. E garanto que foi ela que o provocou. Essa história do passado, também, já foi. Você já teve hoje a oportunidade que queria, e o humilhou na frente de todo mundo.
- Sim, mas agora ele vai aprender a não mexer com mulher dos outros - disse isso e se levantou, no rosto a expressão da raiva. Retirou a navalha do bolso, como que para mostrar seu ideal ao amigo e rumou novamente para a cidade.
- Não faça isso Tião, você vai se arrepender! - José ainda tentou.

No caminho, Tião só conseguia pensar no sórdido acontecimento, conseguia quase que ver a sua frente Joca se apoderando de Tereza. Estava transtornado. Quem já amou e foi enganado, consegue imaginar como ele se sentia.
Não foi difícil encontrá-los novamente. Na casa de Joca as luzes estavam acesas. Tião arrombou a porta num pontapé e se dirigiu para o quarto, onde ainda encontrou Tereza cuidando do amante.
- Vadia!
Quando a empurrou e partiu com a navalha na mão para por fim a vida de Joca, ele já estava previnido e rapidamente puxou o gatilho do 45. Tião cambaleou para trás, tentando se apoiar nos móveis do quarto. Antes de cair, rasgou o rosto de Tereza com a navalha em sua mão descontrolada. O estampido do tiro e o grito de Tereza foi ouvido de longe.

A polícia chegou, pouco tempo depois. Do outro lado da rua, José ficou a observar o barraco. Com sua justiça de malandro do morro, já pensava na melhor forma de se vingar pelo amigo. Nos dias que se seguiram, José cuidou do enterro de Tião e Joca, que tinha favores para cobrar de políticos influentes, conseguiu se livrar de qualquer condenação, alegando legítima defesa. Tereza ostentava no rosto os curativos do corte que certamente lhe deixaria uma incômoda cicatriz no rosto, e isso lhe fazia amaldiçoar Tião sempre que se lembrava do ocorrido.

CAPÍTULO IV – TUDO NO MUNDO É PASSAR

O malandro José também era filho de malandro. Sua mãe lhe deu à luz muito cedo, e teve de o criar sozinha. Sempre lhe contava que seu pai era um homem bonito, namorador e que teve muitas mulheres, mas que era um canalha e a abandonou tão logo soube que estava grávida. Dizia-lhe que seu pai era valente, adorava arranjar confusão a troco de nada.
No fim das contas, José, que sempre teve em mente uma figura idealizada de seu pai, acabou por se tornar aquilo que achava que ele era: valente, bom na capoeira, namorador. 
Quando o assunto era negócios, tinha de ser impiedoso com os desafetos dos políticos que lhe contratavam por guardião. Mas, numa estranha ética, avaliava sempre do que o infeliz era realmente merecedor e assim agia. Era fiel a seus amigos e protegia também muitas mulheres da vida, as quais lhe ofereciam o coração e alguns tostões.
Desde a infância mostrava sua coragem, como quando enfrentou junto de Tião o bando de Joca. Para ele, o episódio morrera há muito tempo, mas os últimos acontecimentos faziam seu coração pedir justiça. Sabia que o mundo dá voltas, e se hoje alguém está se dando bem, certamente isso não irá durar para sempre. Era nisso que baseava toda a sua filosofia de vida, a sua fé. Por isso o malandro tinha o zelo de não errar, e também tinha a paciência de esperar a hora certa de agir.

Conhecia diversas prostitutas na noite carioca, muitas delas conheciam também Joca e Tereza. Obteve delas informações de que Joca, enquanto trabalhava no cassino, aproveitava muitas vezes da bebedeira de ricos frequentadores para lhes assaltar a carteira, quando estavam distraídos. Obviamente, Joca tomava o maior cuidado com isso. Mas José deixou uma de suas "amigas" incumbida de lhe avisar quando ele estivesse para dar o "pulo do gato". Como já havia passado bastante tempo desde a morte de Tião, Joca afrouxara a vigília sobre a possível vingança de José.
E não deu outra, avisado de que ele aproveitara a distração de um homem rico e seus capangas, com as mulheres e a jogatina, para lhes roubar, José chamou a polícia. Dessa vez não houve escapatória, se Joca tinha suas alianças entre os políticos influentes, o que lhe rendia proteção contra as autoridades, este senhor era ainda mais influente. Joca foi pego em flagrante. Antes de ser preso, apanhou dos policiais e dos capangas do senhor. De nada lhe valeu a capoeira, o pouco de capoeira que sabia, contra dez, quinze homens, alguns também exímios nessa arte.
José fez questão de aparecer para vê-lo saindo algemado do cassino. Foi preso, e amargaria duros dias na prisão, onde, se soube depois, foi hostilizado por outros detentos. Numa das surras que levou, lembrou os dias da infância, onde humilhara dois meninos naquela manhã nublada no Morro da Mangueira, justamente os responsáveis por sua prisão - vingador e vingado, José e Tião.

Tereza ficou inconsolada. A cicatriz em seu rosto apagara-lhe a vontade de se cuidar. Não se julgava mais capaz de seduzir um homem e chorava horrores toda vez que se olhava no espelho. Sua sorte era a de que Joca ainda a sustentava, mas, e agora, se ele estava preso? Entrou em desespero quando percebeu que os homens não mais a queriam. Em pouco tempo perdeu as belas formas de seu corpo, devido a depressão em que entrara.
Passara a viver com dinheiro das jóias ganhadas em seus tempos de glória, que vendia para continuar mantendo um certo luxo em sua vida. Quando acabaram as jóias, não teve outra alternativa: colocou um vestido curto, passou um baton fortíssimo em seus lábios, e descabelada e em meio a lágrimas de desgosto se encaminhou para uma esquina, procurando um homem que lhe pagasse o que fosse por uma noite de amor. Nada muito diferente do que já fazia, mas sem o luxo e o conforto. Não arranjava grandes clientes, isso quando não apanhava e ficava sem um tostão.

Castigos justos? Quem poderá dizer?

Enquanto isso, o malandro José, em seu terno branco, chapéu jogado de lado e uma bengala para complementar o estilo, caminhava pelas noites da Lapa, com seu gingado e sua malícia. Sentia-se aliviado, a vingança é mesmo um delicioso prato que se come frio. Mas José era malandro, não deixava de ficar atento para qualquer surpresa que pudesse surgir na volta que o mundo dá...

FIM

(Soldado Capoeira)

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