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terça-feira, 7 de setembro de 2010

A arte da vadiação

rebeldia em forma de festa

“vamo vadiar, vamo vadiar…”

Ouve-se muito falar do termo "vadiação" na capoeira . As canções, cantigas, quadras e corridos sempre estão chamando o jogador para vadiar.
Na capoeira, vadiar significa brincar, jogar descontraidamente, usar o espaço da roda para uma espécie de confraternização entre os praticantes. Essa é uma característica comum a diversas manifestações afroculturais presentes no Brasil, como o samba, o jongo, o maracatu, o lundu, coco de roda, etc...
A origem dessa característica vem, como já cantava Clara Nunes, "desde o tempo da senzala". Naquela época de tanto sofrimento para os negros o trabalho era uma lei cuja violação era punida com violência e crueldade. Trabalhava-se exaustivamente e o trabalho chegava a ser confundido com a própria vida.
Os escravos que fossem pegos sem trabalhar eram chamados e tratados como vadios. Logo, as atividades que não fizessem parte da rotina de trabalho eram entendidas como "vadiação", uma afronta a lei do trabalho, mesmo quando permitidas pelos senhores de engenho. A permição era, obviamente, uma estratégia para que através dessas atividades os escravos, sentindo-se livre por alguns instantes, descarregassem sua ânsia de liberdade e esquecessem de se rebelar ou fugir.
Mas, era justamente nesses momentos que os negros se faziam resistentes ao domínio que lhes tentavam impor. Mantinham sua cultura viva e forte, sua crença, suas lutas de defesa e ataque (que disfarçadas em dança se tranformariam na capoeira), congregavam a união do grupo, etc...
A vadiação era uma das formas de rebeldia e resistência dos negros, que dessa forma conseguiam burlar a vigilância constante de feitores e jagunços, e em forma de festa, "debaixo do nariz" de seus carrascos, conspiravam a sua revolta.

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Jogar Capoera ou Dance de la Guerre, Rugendas, 1835

Fugas, motins, capoeira... logo, as autoridades iriam perceber o perigo representado pela vadiação e passariam a vigiá-la ainda mais, desestimulá-la e persegui-la. Mas, o negro já não podia mais deixar de vadiar e mesmo sob a cruel perseguição arranjava formas de praticar suas atividades.
A vadiação, era uma necessidade, uma válvula de escape para a tensão do dia-a-dia das fazendas e engenhos, uma forma do escravo se declarar e se sentir livre.
Um texto de Eunice Catunda, contido no livro "O Barracão do mestre Waldemar", do pesquisador Frede Abreu, nos fala justamente dessa urgência que o povo tem de praticar a sua cultura. Para ela a arte, a cultura popular é mais verdadeira, pois não é só uma forma de diversão, e sim uma necessidade imprescindível.

Com o passar do tempo a vadiação tomaria forma e corpo se transformando em samba, em capoeira, em danças religiosas, como o afoxé e o jongo, enfim em arte popular, viva e forte, e como, cantou Clara Nunes, "quanto mais chicote estala, e o povo se encurrala, o som mais forte se propala". O Candomblé, a Umbanda e afins também fazem parte dessa cultura, mas, não podemos, por respeito, citá-las como vadiação, afinal são práticas religiosas e conduzidas como dever, como obrigação, como trabalho pelos negros. São práticas também símbolos de resistência e de admirável diversidade e riqueza, fontes infindáveis de cultura.

carybe-vadiacao47_g Vadiação, gravura de Carybé

Curiosa é também a relação que a própria classe dominante tinha com as manifestações afro, por vezes perseguindo e proibindo, e em outras vezes se utilizando das mesmas práticas em prol de algum interesse. Como por exemplo, a capoeira era proibida, mas diversas autoridades contratavam os capoeiristas para fazer o papel de guarda-costas ou de jagunços políticos.

Enfim, vadiar para os senhores de engenho era uma simples forma de diversão e distração dos escravos que se tornou perigosa com o passar do tempo. Vadiar para os escravos era uma forma de festejar, resistir e rebelar, era uma verdadeira arma de guerra.

Vadiação é rebeldia, uma rebeldia em forma de festa, uma rebeldia em forma de arte.

(Soldado Capoeira)

Bibliografia:
- música:
Brasil Mestiço, Santuário da Fé, de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro
no álbum Brasil Mestiço, de Clara Nunes,1980

- livro:
"O Barracão do mestre Waldemar", de Frede Abreu, Organização Zarabatana, Salvador, 2003.

4 comentários:

  1. Há décadas me sinto incomodado com o uso desse termo. Até mesmo quando praticante de capoeira. Tudo está muito claro da origem do uso. Não entendo como rebeldia uso do termo. A ação de capoeira não merece a perpetuação de um termo negativo, mesmo que de alguma forma tenha assumido outro significado no meio da capoeira. Ficaria mãos feliz se ao invés desse uso, usassemos um termo mais honroso para nossa prática. Sei que isso pode parecer impossível, mas acredito que isso sim seria belo. Se desligar realmente de uma expressão que acredito jamais ter sido criada pelo meio e sim imposta pelo regime escravocrata. Já passou da hora de quebrar essa corrente. Belo artigo e blog. Obrigado.

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  2. Há décadas me sinto incomodado com o uso desse termo. Até mesmo quando praticante de capoeira. Tudo está muito claro da origem do uso. Não entendo como rebeldia uso do termo. A ação de capoeira não merece a perpetuação de um termo negativo, mesmo que de alguma forma tenha assumido outro significado no meio da capoeira. Ficaria mãos feliz se ao invés desse uso, usassemos um termo mais honroso para nossa prática. Sei que isso pode parecer impossível, mas acredito que isso sim seria belo. Se desligar realmente de uma expressão que acredito jamais ter sido criada pelo meio e sim imposta pelo regime escravocrata. Já passou da hora de quebrar essa corrente. Belo artigo e blog. Obrigado.

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  3. Amei este artigo, pois já tinha ouvido este termo em vários sambas, mas não compreendia o significado. Obrigada!

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  4. Parabéns pelo artigo meu Nobre. Eu por exemplo vi a expressão pela primeira vez sendo associada a Capoeira quando fui trabalhar em um lugar chamado Passeio Publico aqui em Salvador. tinha umas fotos antigas em uma sala abandonada e vi essa expressão escrita todas elas daí fiquei curioso para saber a historia.

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